Antigo escuteiro com 103 anos sempre viveu a vida com amor

Foi no Lar São Vicente de Paulo, em Carnaxide, que o Correio da Linha se sentou à conversa com Manuel Tacão Monteiro que, com 103 anos, é um exemplo de como a arte e o serviço à comunidade podem entrelaçar-se para criar uma vida rica e significativa.

Embora os seus documentos refiram o dia 11 de junho de 1921 como a data do seu nascimento, essa é, na realidade, a data em que foi registado. Assim, nascido a 23 de maio de 1921, em Vila real de Santo António, Manuel Tacão Monteiro, demonstrou desde cedo uma inclinação natural para as artes. “A minha infância foi igual à de tantos outros rapazes: cheia de brincadeiras. No entanto aos 14 anos já colaborava com um jornal infantil de Lisboa chamado Tic Tac. Eu fazia desenhos e versos para este jornal, a partir de Vila Real de Santo António” relembra, com um sorriso nostálgico. Esta sua paixão pela escrita levou-o a criar um jornal mensal, escrito à mão, intitulado Zé Melão que foi publicado durante 4 anos, tendo acabado quando Manuel Tacão Monteiro rumou a Lisboa.

Durante a II Guerra Mundial conheceu a sua primeira mulher – com quem viria a casar aos 25 anos – e teve um filho. Ele trabalhava numa barbearia, ela era costureira. Em busca de um futuro melhor para a família, Manuel Tacão Monteiro mudou-se para Lisboa aos 27 anos. “Arranjámos casa em Belém, num primeiro andar que me permitia ver os jogos do Belenenses, clube do qual sou adepto, desde então. Quando vivia em Vila Real era do Lusitano Futebol Clube que chegou a jogar um ano na 1.ª divisão.”, conta.

De Belém, Manuel Tacão Monteiro e a família mudaram-se para o número 103 da Rua Luís de Camões, em Linda-a-Velha. “A casa de Belém era muito velha e a minha mulher ouvia as patas dos ratos no nosso teto o que lhe causava muita impressão. Então, como era muito decidida, foi procurar uma casa melhor em zonas como Algés, Dafundo, Cruz-Quebrada…tudo sem eu saber, foi uma surpresa que ela me fez.”. Aquela seria a casa onde Manuel Tacão Monteiro viveria por mais de sessenta anos, até ser transferido para um lar.

Foto: Paulo Rodrigues

UMA VIDA DEDICADA ÀS ARTES

Em Lisboa continuou a exercer a sua profissão de barbeiro, numa barbearia em Alcântara, da qual mais tarde haveria de se tornar proprietário. Paralelamente, dedicava-se às mais diversas artes.

Na escrita, colaborava com várias publicações: “Escrevia a página humorística do Jornal da Ericeira, para onde enviava anedotas ilustradas. E escrevi para o Diário de Lisboa. Lembro-me de a certa altura essa publicação ter lançado uma rubrica para as pessoas escreverem sobre as suas terras. Fui o primeiro a escrever sobre Linda-a-Velha, que naquela altura tinha 15 mil habitantes”. Além disso, publicou um livro patrocinado pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António intitulado “VRSA há 90 anos: figuras, factos e histórias verídicas”. 

Estudou música na Banda de Vila Real de Santo António, onde começou pela composição e leitura. Quando teve de escolher um instrumento para tocar, recorda-se de uma história: “Cheguei a casa e a minha mãe levou as mãos à cabeça horrorizada, a perguntar o que é que eu havia feito. O instrumento que eu tinha escolhido era o trompete. Eu era muito magrinho e ela disse-me que eu não tinha fôlego para aquilo. Obrigou-me a entregar o instrumento à banda. Senti-me muito envergonhado. Com muito sacrifício, passado algum tempo, comprou-me um bandolim, que foi então o primeiro instrumento que aprendi a tocar.”.

Foto: Paulo Rodrigues

Ao longo da sua vida haveria de aprender a manusear mais uma série de instrumentos, como o violino, o banjo, a viola, o bandolim, a balalaica, o acordeão e a gaita de foles. Em Lisboa, envolveu-se por várias vezes na tradição das Marchas Populares tendo escrito a letra e a música, para a marcha da Ajuda e também para a marcha da Graça, que num dos anos acabaria por vencer o concurso com uma composição sua. Aos 90 anos, foi responsável, pela fundação do grupo coral de Linda-a-Velha, do qual foi maestro. “Chegámos a ir à televisão a cantar canções de Natal,” lembra.

A pintura também fez parte da vida de Manuel Tacão Monteiro. “Fiz três exposições de pintura a óleo e também me dediquei a pintar pratos para a ilha da Madeira,” revela. Os seus pratos, decorados com o bailinho da Madeira e as suas típicas casas, eram enviados para a ilha, onde eram apreciados como se fossem feitos lá. Além disso, durante vários anos, quando saía da barbearia, às 19h00, comia qualquer coisa rápida e ia trabalhar numa agência de desenho publicitário. “A maior obra que lá se fez, data da estreia da Branca de Neve. Os diretores do Condes queriam um cartaz do comprimento do teatro, feito num dia. Ninguém quis assumir tal responsabilidade. Até que o Hélder Martins, dono daquele estúdio decidiu avançar. Falou comigo e juntamente com dois amigos fizemos o cartaz com seis metros de comprimento e dois metros e meio de largura numa noite. Começámos às 20h00 e às 6h00 o cartaz estava terminado”, conta orgulhoso.

Apesar das várias atividades que preenchiam os seus dias, aquela a que mais se dedicou foi ao escutismo, sendo inclusive, em conjunto com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, um dos sócios fundadores do movimento escutista em Portugal. No seu centésimo aniversário, o Presidente da República fez questão de o homenagear pela efeméride enviando-lhe uma lembrança. “Fui chefe fundador dos escuteiros em Vila Real de Santo António e, já em Lisboa, fui chefe do agrupamento número 94 da Ajuda. Criei também um cancioneiro escutista e uma orquestra de escuteiros” recorda. Manuel Tacão Monteiro continuou a colaborar com o movimento escutista através da Associação dos Antigos Escuteiros. 

Foto: Paulo Rodrigues

RESISTÊNCIA AO REGIME

Durante os anos de ditadura em Portugal, Manuel Tacão Monteiro recorda várias histórias, nomeadamente dos tempos em Vila Real de Santo António. “Quando fiz 18 anos, fui inscrever-me para votar. O documento era meia folha de papel selado e assinado. Entreguei-o e no dia seguinte a PIDE veio ao meu encontro questionar-me porque é que queria votar, se nunca tinha votado antes. Expliquei-lhes que não o tinha feito porque não tinha idade para tal. A resposta deles foi “Vá para casa e tenha juízo!” Eles sabiam que eu era amigo de um senhor com ligações comunistas, embora eu não estivesse ligado ao partido”, relembra.

Noutra situação, relembra-se de estar reunido na sede dos escuteiros de Vila Real, localizada numa sala do Clube Náutico, com janelas envidraçadas, quando elementos Mocidade Portuguesa apedrejaram as mesmas. “Eles fizeram isto como vingança porque queriam que eu integrasse a Mocidade Portuguesa e eu disse-lhes que tinha nascido escuteiro e escuteiro haveria de morrer. Quando apedrejaram as janelas, nós saímos a correr com varas e com o que tínhamos à mão e demos-lhes uma tareia. No dia seguinte fomos chamados pela PIDE e explicámos que apenas estávamos a defender a nossa sede, que pertencia ao Clube Náutico, e que agora tínhamos de arcar com os custos”, recorda mostrando a sua determinação e coragem frente à opressão. Assim, quando confrontado com a pergunta “Como viveu o 25 de Abril?”, responde com um sorriso e diz: “Com muita alegria!”.

O AMOR NÃO TEM IDADE

Aos seus 80 anos a esposa de Manuel Tacão Monteiro adoeceu, e ele decidiu ceder a sua parte da barbearia dedicando-se apenas à pintura e à música.  Após a morte da sua primeira companheira, aos 87 anos, esteve dois anos viúvo e muito fechado. Até ao momento em que se deparou com um panfleto a anunciar de uma excursão à Nazaré organizada pela União de Freguesias de Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada/Dafundo. Decidiu embarcar na aventura. Aí conheceu uma senhora que o passou a acompanhar nas suas caminhadas diárias ao Jamor.

Namorámos durante 1 ano e meio, mas ela não gostava das mesmas coias que eu: não gostava de sardinhas, nem de caracóis, nem de café, nem de ir à praia…ora eu nasci ao lado da praia. Certo dia decidi ir a uma sardinhada organizada pela Junta e pelo caminho encontrei uma senhora, Graciete Guerreiro, que me perguntou se sabia onde era a mesma. Disse-lhe que também ia para lá e acabámos por ficar sentados na mesma mesa à conversa. Eu conhecia-a porque ela fazia parte do coro. Ela morava na reboleira e depois dos ensaios eu ficava com ela à espera do autocarro 114 que a levava até casa. Num desses momentos disse-lhe que tinha terminado o namoro com a outra senhora e ela respondeu-me “Ah, você depressa arranja outra.”, ao que eu lhe perguntei “Com 90 anos quem é que me quer?” e ela abriu-me as portas ao dizer “Se calhar é alguém que não está muito longe”.

Aos 91 anos começaram a viver juntos até Manuel Tacão Monteiro sofrer uma infeção nos brônquios. Os filhos decidiram interná-lo num lar com cuidados médicos, enquanto Graciete Guerreiro foi viver com a filha. “O lar era a 80 quilómetros de Linda-a-Velha. Não havia transportes para lá, pelo que só quem tinha carro é que me podia visitar. Em 15 dias estava recuperado, mas percebi que estava num lar e que não podia sair. Eu ia enlouquecendo. Estive lá 3 anos e pouco e todos os dias, pelas 17h00 a Graciete ligava para saber de mim”, recorda emocionado. Graciete Guerreiro acabou por entrar no Lar São Vicente de Paulo a pedido da filha. Os responsáveis pela mesma, percebendo que a sua cara metade estava num outro lar na margem sul, reuniram esforços para os tentar juntar e aqui estão juntos há três anos. 

Manuel Tacão Monteiro completou 103 anos recentemente, celebrando o momento com um convívio entre amigos e família. “Fez-se aqui uma grande festa com uns enormes balões com a minha idade e dois bolos, um trazido pela minha nora e outro pelos meus amigos, antigos escuteiros,” conta. 

Ao refletir sobre sua vida, Manuel Tacão Monteiro sente-se grato pelas muitas experiências e conquistas. “Recebi várias medalhas de prata em corridas. Nos escuteiros, fui reconhecido com condecorações de cobre, prata e ouro, e tenho a maior condecoração, a flor de lis,” diz mencionando que doou tudo ao museu dos antigos escuteiros, localizado na Cova da Piedade.

A vida de Manuel Tacão Monteiro é um testemunho de empenho, criatividade e serviço à comunidade. Em cada projeto e relação que cultivou, deixou uma marca indelével de dedicação e amor, mostrando que a verdadeira riqueza da vida está nas ligações que estabelecemos e nas paixões que seguimos. 

NOTA: Artigo escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Autor: Raquel Luís

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