Em 1925, foi proclamado em Genebra (Suíça), sede europeia das Nações Unidas, o Dia Internacional da Criança, que é celebrado em muitos países, incluindo Portugal, a 1 de Junho, com o propósito de homenagear as crianças e alertar a comunidade mundial para os direitos dos mais jovens. Um dia do calendário civil não chega para mitigar as necessidades prementes que as crianças continuam a enfrentar num mundo publicitariamente desenvolvido e tecnológico. O muito que ainda há a fazer exige um esforço redobrado.
Ainda hoje, em muitos palcos de guerra e de agitação social espalhados pelo globo, as crianças são quem mais sofre, feitas soldados à força, com infâncias interrompidas subitamente, vítimas de maus-tratos, alvos da mão-de-obra escrava infantil e de redes de tráfego humano, cancros de uma sociedade ainda bem menos justa do que desejávamos e reclamamos. Pelo muito que ainda há a fazer para mitigar a fome, aprender a brincar, instruir e ensinar a construir um futuro melhor, todos os esforços são poucos. Um Dia Internacional da Criança serve para alertar, mas não basta para sossegar consciências.
Cada vez mais, são precisos projectos inovadores e cúmplices com a vontade de encontrar soluções para situações particulares, de dar respostas capazes de fazer a diferença num Mundo tantas vezes indiferente. A Casa da Criança de Tires tem sido um farol nesse opaco nevoeiro social, pardacento quase sempre, tantas vezes incapaz de construir alternativas válidas, longe de processos burocráticos incompreensíveis e frequentemente desnecessários.
Inaugurada a 15 de Maio de 2001 pela Fundação Champagnat, uma Instituição Particular de Solidariedade Social criada pela Congregação dos Irmãos Maristas, esta casa de acolhimento residencial especial, que dá abrigo a filhos de reclusas do Estabelecimento Prisional de Tires, procura assegurar o convívio possível entre mães e filhos, para que não se quebrem laços de afetos imprescindíveis ao desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida.
O jornal ‘O Correio da Linha’ foi conhecer melhor este projecto apostado em trazer toda a alegria possível às crianças que ali vivem. As respostas às nossas questões foram dadas por Carla Nunes Semedo, directora técnica da Casa da Criança de Tires há quase 11 anos.
REGRAS, MIMOS E FERRAMENTAS DE DEFESA
Correio da Linha (CL) – O que distingue a Casa da Criança de Tires das restantes casas de acolhimento de crianças? O que esteve na base da sua criação?
Carla Nunes Semedo (CNS)– A Casa da Criança de Tires é uma casa de acolhimento residencial, instituição pioneira e única no nosso País, que acolhe crianças filhas de reclusas e se constitui como resposta às necessidades das mães reclusas e ao sistema prisional no qual estão integradas. Num ambiente que se pretende familiar as crianças recebem regras, mimos e ferramentas de defesa para enfrentar um mundo que é tão mais fácil para outros meninos.
Tendo por base uma intervenção multidisciplinar, a missão desta Casa, ao longo de 18 anos de existência, tem sido reparar e reabilitar num ambiente acolhedor e com intencionalidade terapêutica, onde a socialização, educação, formação e desenvolvimento das crianças ocorre paralelamente com uma intervenção realizada em meio prisional, munindo as mães reclusas de competências pessoais, sociais e parentais com o objectivo último de inverter a tendência destrutiva do seu percurso de vida, o ciclo da criminalidade, transformando-o num projecto de sucesso e de integração plena na sociedade civil.
Esta necessidade foi detectada pelos Irmãos Maristas, Fundação Champagnat, que observou que aquando da inexistência de enquadramento familiar e por determinação legal as crianças não poderiam permanecer no Estabelecimento Prisional após os três anos, ficando desprotegidas. Por conseguinte, foi equacionada esta resposta que protegia as crianças e salvaguardava os seus direitos, bem como favorecia a manutenção do vínculo afectivo com as mães, num registo de proximidade.
CL – Quantas crianças estão neste momento na Casa da Criança de Tires? De que faixa de idades?
CNS– Actualmente temos 13 crianças, pelo que estamos em sobrelotação na medida em que uma das premissas é de não separação de irmãos. As crianças têm entre 3 e 10 anos.
CL – Que equipa trabalha na casa? Quantas pessoas, especialidades?
CNS– A equipa é de composição multidisciplinar para atender às especificidades destas crianças, atendendo a que nos pautamos pela efectiva reabilitação física e psicológica das crianças, bem como pela promoção de relações salutares, emocionalmente significativas. Neste enquadramento, a nossa equipa é composta por 12 elementos, entre a equipa técnica e a equipa educativa. A formação da equipa abrange as áreas de Psicologia, Serviço Social, Psicopedagogia, Animação Sócio-cultural e da Acção Psicossocial.
RECLUSAS TÊM MOMENTOS DE CONVÍVIO COM OS FILHOS
CL – As mães têm acesso às crianças? Quantas horas por dia?
CNS– No âmbito da nossa intervenção está prevista a intervenção familiar, que implica momentos de convívio entre a família e a criança. No que se refere às mães reclusas, existem dois períodos semanais, em relação às restantes famílias é aferido pontualmente de acordo com a idade da criança e disponibilidade da família.
CL – Costumam assinalar o Dia Mundial da Criança? Com que tipo de actividades?
CNS– O Dia Mundial da Criança é assinalado com actividades escolhidas pelas crianças, envolvendo parceiros que estão na disposição de se envolver com a nossa resposta social. Este ano estiveram, de manhã, num Teatro dinamizado pelos pais do Colégio Marista de Carcavelos e, no final da tarde, no nosso Arraial Solidário, evento dinamizado com o objectivo de abrir as portas à comunidade envolvente e, paralelamente, angariar fundos para as férias das crianças, para a construção de memórias significativas durante os três meses de Verão.
CL – Que tipo de serviços presta a Casa da Criança de Tires, para além do acolhimento?
CNS– Pautamos por um acolhimento com intencionalidade terapêutica que efectivamente prevê a reabilitação das crianças e o reaprender a viver a vida com optimismo e felicidade. Com efeito, dispomos de vários programas que complementam o nosso trabalho e favorecem o crescimento salutar das crianças, nomeadamente: o ‘Refresco de Filosofia’, que é um atelier que as ensina a ter um pensamento crítico; o ‘Programa Ser’, que é uma actividade anti-bullying; o programa de promoção da leitura; a meditação guiada para crianças; o programa de bodyboarding, que integra uma componente de promoção da felicidade, e programas de gestão emocional que potenciam a autoestima, a comunicação assertiva e positiva e a aceitação da mudança. Paralelamente, intervimos junto das famílias através da dinamização de programas de competências pessoais, sociais e parentais munindo as famílias de ferramentas e criando sinergias que favoreçam dinâmicas familiares mais salutares e harmoniosas, protectoras das crianças.
“CONTAMOS COM PARCEIROS FORMAIS E INFORMAIS”
CL – Com que apoios contam para desenvolver este projecto?
CNS– Para além do Acordo de Cooperação que contempla as responsabilidades de entidades como o Instituto de Segurança Social, a Direcção de Serviços Prisionais e a Câmara Municipal de Cascais, contamos com parceiros formais e informais que disponibilizam serviços, recursos e voluntariado, no âmbito da responsabilidade social das empresas, um excelente contributo para a sustentabilidade da resposta, bem como para aumentar a sua visibilidade.
CL – No que diz respeito ao Estado, que tipo de apoio fornece à Casa da Criança de Tires?
CNS– No âmbito do acordo de cooperação celebrado com o Instituto de Segurança Social existe uma comparticipação desta entidade que cobre 60% dos custos totais da resposta, a Câmara Municipal de Cascais, através do protocolo de qualificação das casas de acolhimento atribui um subsídio de 22% do valor concedido pela Segurança Social e a Direcção Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais contribui com o espaço da casa, a alimentação, água e luz. Os restantes custos são cobertos através de donativos monetários e em géneros, de particulares e empresas, e mediante a dinamização de campanhas de angariação de fundos.
CL – Após a saída das mães do sistema prisional, que acompanhamento é dado às crianças? Continuam a ser seguidas pela Fundação Champagnat?
CNS– O processo de desinstitualização prevê um ‘follow up’ nos seis meses seguintes, assim como a articulação com entidades parcerias que farão o acompanhamento de proximidade no domicílio.
CL – Quais as principais preocupações com estas crianças? Quais as suas principais necessidades?
CNS– A nossa maior preocupação é que a passagem pela Casa da Criança seja uma memória feliz e que se resgate, na medida do possível, uma infância que está perdida entre os maus-tratos, negligência e abusos a que estas crianças estão sujeitas. Com efeito, é nossa intenção promover um acolhimento com intencionalidade terapêutica que favoreça a reparação dos danos físicos e psicológicos que decorrem das suas vivências em contexto familiar. Por conseguinte, munimo-nos de todos os programas e intervenções que favoreçam a sua reabilitação.
CL – Quantas crianças já passaram pela Casa da Criança de Tires, desde a sua inauguração em 2001?
CNS– Até ao momento 129.
FALTA FINANCIAMENTO PARA PROGRAMAS IMPORTANTES
CL – Principais dificuldades relativamente ao acompanhamento destas crianças?
CNS– As principais dificuldades decorrem da inexistência de um acompanhamento qualificado, regular e gratuito a nível de saúde mental, bem como da manutenção de recursos humanos com o perfil adequado, atendendo à precariedade salarial, face à exigência emocional que um trabalho destes comporta.
CL – Com que dificuldades lutam? Quais as principais necessidades da Casa da Criança de Tires?
CNS– As nossas maiores dificuldades são efectivamente a nível financeiro sendo constante o esforço para manter a qualidade de serviços que pretendemos. Seria nosso desejo poder integrar todas as crianças nos programas, intervenções, terapias que melhor respondam às suas necessidades sem atender aos constrangimentos financeiros.
CL – Que projectos planeiam realizar no futuro?
CNS– De futuro seria nossa intenção a manutenção de programas para os quais já reconhecemos e validámos o impacto, como o ‘Refresco de Filosofia’ e o programa ‘Onda de Emoção’, que após o projecto piloto deixam de ter continuidade por inexistência de financiamento.
CL – As mães reclusas podem acompanhar os filhos nas festas realizadas na Casa da Criança de Tires? Por exemplo, de aniversário?
CNS– Actualmente, face a molduras penais demasiado longas, deixou de ser possível este acompanhamento, numa tentativa de minimizar o risco de fuga.
CL – Que eventos realizam ao longo do ano?
CNS– O nosso maior evento é o Arraial Solidário, contudo gostaríamos de enveredar pela dinamização de concertos solidários.
CL – Qual o momento mais feliz vivido na Casa da Criança de Tires?
CNS– Os momentos de saída das crianças trazem sempre um mix de emoções, porém sobrepõe-se a felicidade de cada criança poder crescer com um colo só seu.
“É TRISTE DIZER A UMA CRIANÇA QUA A FAMÍLIA NÃO A QUER MAIS”
CL – Qual o momento mais triste?
CNS– Dizer a uma criança que a sua família biológica não a queria mais… e vê-la regressar à instituição…
CL – Desejos para o futuro?
CNS– Conseguir que o caminho seja de valorização do trabalho dinamizado por entidades como a nossa e que se reveja a tabela salarial das IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social), equiparando-a à tabela do Estado, para que possamos escolher trabalhar com os melhores! Assim exige o nosso trabalho quando estamos a educar e a formar os bebés que ainda vão nascer, sim porque estas crianças que hoje acolhemos serão os pais de amanhã!
UM LAR COM REGRAS E MIMOS
Na página que tem disponível na Internet, a Casa da Criança de Tires dá conta dos seus propósitos: “Tendo por base uma intervenção multidisciplinar, a missão da Casa é reparar e reabilitar num ambiente acolhedor, com intencionalidade terapêutica e securizante, incidindo na socialização, educação, formação e no desenvolvimento das crianças e numa intervenção realizada em meio prisional, munindo as mães reclusas de competências pessoais, sociais e parentais com o objetivo último de inverter a tendência destrutiva do seu percurso de vida e o ciclo da criminalidade.”
“Nesta Casa de Acolhimento Residencial acolhemos filhos de reclusas do Estabelecimento Prisional de Tires e crianças que viviam em situação de perigo garantindo os cuidados adequados às suas necessidades e proporcionando condições que promovam os direitos das crianças consagrados na Convenção dos Direitos da Criança, nomeadamente o direito a ter um Lar e uma Família”, assinalam os responsáveis pelo projecto lançado pela Fundação Champagnat em Maio de 2001.
Tudo porque, refere ainda o texto de apresentação difundido na página da Casa da Criança de Tires na Internet: “Todas as crianças merecem o melhor da vida mas para uma parte dos pequeninos deste país, ter um lar, ir à escola, fazer amigos ou apenas integrar a sociedade não são direitos garantidos, a menos que estejam em lugares como a Casa da Criança de Tires. Num ambiente que se pretende familiar recebem regras, mimos e ferramentas de defesa para enfrentar um mundo que é tão mais fácil para outros meninos.”
ADORO A CASA DA CRIANÇA