A Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra (EPRPS) nasceu de uma necessidade identificada pela autarquia sintrense: a escassez de técnicos ligados à área da Conservação e Restauro num território com um relevante património arquitectónico de projecção mundial que necessita de manutenção permanente. A este factor acresce a importância de manter uma população jovem em idade escolar disposta a optar por uma via profissionalizante ligada ao sistema de ensino, com a possibilidade de poder vir a ingressar no mercado de trabalho, depois de receber uma formação certificada.
Foi com base nestes pressupostos que a EPRPS abriu portas em 17 de Maio de 1989 num edifício localizado próximo do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, na freguesia de São João das Lampas. A Escola manteve-se neste local até 2022, ano em que, devido à necessidade de crescimento, foi transferida para novas instalações no Cacém, ocupando o edifício da antiga fábrica Melka. A acessibilidade, muito mais facilitada, foi uma das razões para esta mudança. A necessidade de dispor de mais espaço e poder contar com instalações mais modernas e adequadas foram outras das prioridades.
O jornal ‘O Correio da Linha’ esteve à conversa com Cristina Mesquita, directora da Escola, proveniente da área do Direito e uma apaixonada confessa pelo mundo das Artes, que assumiu há cerca de uma década a direcção deste projecto educativo instalado junto à estação de comboios do Cacém. Oportunidade para ficar a conhecer o presente e perspectivar, também, o futuro da EPRPS, numa altura em que a presença de técnicos qualificados é cada vez mais uma exigência que se faz sentir nos trabalhos de Conservação e Restauro, uma actividade que assegura um nível elevado de empregabilidade e a possibilidade de auferir bons rendimentos.
“FOI-ME LANÇADO ESTE DESAFIO”
Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como é que assumiu este desafio?
Cristina Mesquita (CM) – A minha formação é de jurista. Vim aqui parar por concurso, como não podia deixar de ser. Eu sou advogada de formação, mas suspendi a actividade. Ingressei na Câmara Municipal de Sintra (CMS) como técnica superior e foi-me lançado este desafio. O concurso abriu e eu concorri. Poder-se-á perguntar: “Então, Direito/Escola… Felizmente, as escolas profissionais privadas (e acho que o modelo é interessante) distinguem aquilo que é pedagógico daquilo que é administrativo, sendo que a EPRPS tem a componente pedagógica, que está entregue a um docente, e a componente administrativa, que tem a ver com números, com a gestão do dia-a-dia, de questões que um professor em regra não se deverá ocupar. Portanto, temos isso perfeitamente definido: a parte pedagógica de um lado e a parte administrativa do outro. Foi por essa via que aqui cheguei.
CL -O que levou à criação da EPRPS? Qual a sua marca identitária?
CM – A EPRPS nasceu no dia 17 de Maio de 1989. Na altura, só disponibilizava uma única oferta formativa, que era o curso de Técnico de Património Edificado. Nasceu da necessidade que a CMS sentiu de criar técnicos intermédios qualificados na área da Conservação e Restauro. Nós estamos em Sintra, Património Mundial, com imenso património, e havia necessidade de criar mão-de-obra intermédia qualificada para corresponder aos desígnios que já na altura se colocavam no que respeita à reabilitação urbana e à reabilitação do edificado com especiais características e especiais preocupações. A Escola nasceu desta necessidade e, também, da necessidade de combater aquilo que era o abandono e insucesso escolar, que à data se faziam sentir.
A EPRPS nasceu com estas preocupações. Primeiro, necessidade de criar técnicos que permitissem garantir a perpetuação de um património único e a sua manutenção. Depois, ir ao encontro de outro tipo de ofertas mais apelativas que agarrassem os nossos jovens ao ensino, fazendo com que eles pudessem completar a sua escolaridade obrigatória.
CL – O que mais distingue a EPRPS?
CM – É nossa preocupação continuarmos nesta senda de disponibilizar uma oferta formativa não redundante. Todos os nossos cursos são exclusivos e únicos no concelho, alguns deles no País e outros na Área Metropolitana de Lisboa.
CL – Quantos cursos são leccionados na Escola?
CM – Dispomos de seis cursos: Assistente de Conservação e Restauro; Técnico de Fotografia; Técnico de Design de Interiores/Exteriores; Técnico de Audiovisuais; Técnico de Produção e Tecnologias da Música e Intérprete de Dança Contemporânea. Os cursos têm a duração de três anos e têm equivalência ao Ensino Secundário.
Entretanto, é nosso propósito abrir, no próximo ano, o curso de Instrumentista de Cordas e de Tecla. Queremos aproveitar toda a potencialidade das orquestras escolares de Sintra, um projecto fantástico dirigido pela Divisão de Educação e Juventude da CMS. Queremos aproveitar todo esse potencial, de que fazem também parte dois conservatórios, várias orquestras filarmónicas e as fanfarras dos nossos bombeiros.
CL – Quais são os cursos que têm mais procura?
CM – Técnico de Produção e Tecnologias da Música, Técnico de Audiovisuais e Técnico de Design de Interiores/Exteriores, sendo que este curso foi o que teve maior procura nos últimos dois anos.
CL – Dentro da área de Conservação e Restauro, qual o ofício que mais procura tem registado?
CM – Diria que os ofícios que maior procura têm registado no concelho serão a cantaria, a azulejaria e os estuques.
CL – Quantos alunos frequentam a EPRPS?
CM – Cerca de 300 alunos.
CL – Quantos docentes tem a Escola? E outros colaboradores?
CM – A nossa equipa é formada por 51 professores e mais 12 colaboradores. E contamos, ainda, com o conjunto de todo o universo municipal de suporte, na manutenção, limpeza, departamento informático, etc..
“SOMOS PROPRIEDADE DE UMA ENTIDADE PÚBLICA”
CL – A Escola tem desenvolvido parcerias com outras entidades? Quais?
CM – Temos uma parceria no curso de Intérprete de Dança Contemporânea com a Companhia de Dança Contemporânea de Sintra Ai!aDança, que nos dá apoio. As aulas práticas decorrem na Academia Ai!aDança.
Outra das parcerias que temos abrange o curso de Técnico de Audiovisuais, promovido no âmbito da formação tecnológica do curso com a Unidos pela Televisão, uma associação que se dedica a levar a Televisão até às escolas.
CL – A oferta formativa da EPRPS integra o Plano Nacional de Educação?
CM – No que diz respeito à estrutura, nós somos uma escola privada porque não integramos a rede pública de ensino, mas somos propriedade de uma entidade que é pública. Temos total autonomia do ponto de vista administrativo. Para todos os efeitos, somos uma escola privada, apesar de sermos uma entidade que é pública.
Do ponto de vista pedagógico, dependemos do Ministério da Educação, que tem, todos os anos, de aprovar os planos curriculares dos cursos que pretendemos disponibilizar, sendo que temos uma autorização de financiamento da DGEstE (Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), portanto do Ministério da Educação, para leccionar esses cursos.
Sempre que decidimos abrir um novo curso temos de apresentar uma proposta ao Ministério da Educação. Os nossos cursos oferecem uma dupla certificação: uma certificação académica (equivalência ao 12.º ano) e uma certificação profissional de nível 4 do Quadro Europeu de Qualificações.
CL- Existe algum departamento na Escola que desenvolva planos de empregabilidade para os alunos já formados? Foi criada uma bolsa de estágios para alunos finalistas? A Escola conta com meios para colocar os seus alunos no mercado de trabalho? Como está essa aproximação ao Mundo do Trabalho?
CM – Nós temos um Serviço de Psicologia e Orientação Escolar, que faz essa ponte e presta essa ajuda. Contamos com parcerias com várias entidades, como a EUROPALCO, a AudioMatrix, a Associação Dínamo, a Câmara Municipal do Alvito e outras instituições, onde os nossos alunos podem fazer formação em contexto de trabalho.
Além disso, beneficiamos também de uma grande vantagem, que é pertencer a uma Câmara Municipal. Somos desafiados a participar em muitos eventos da Autarquia. Por exemplo, fizemos com os nossos alunos do curso de Técnico de Audiovisuais o ‘streaming’ do Concerto das Orquestras Escolares com a cantora Marisa Liz, realizado em Junho passado.
Os nossos alunos não têm estágios, têm formação em contexto de trabalho. Esta formação ocupa 600 horas. Não é uma coisa que começa agora, são experiências que os alunos vão tendo ao longo do curso.
No Curso de Técnico de Audiovisuais, este é o primeiro ano em que leccionamos o 3.º ano e já temos pedidos de alunos, cujos pais trabalham em canais de televisão, para eles fazerem a sua prova de aptidão (prova final do curso) num canal de televisão.
Nós fazemos o acompanhamento dos alunos que formamos na EPRPS, muitos dos quais acabam por desenvolver uma actividade profissional como ‘freelancer’. Sabemos onde andam e o trabalho que realizam.
CL – Qual é a taxa de abandono dos alunos? Quais os principais motivos?
CM – Neste momento, a métrica que temos está alinhada ao nível nacional. Temos cerca de 40% de abandono. Porquê? Os 18 anos marcam um ponto de viragem. E ainda estamos a sofrer um bocadinho o impacto COVID, que foi terrível. Muitos alunos tiveram de ir trabalhar para fazer face às dificuldades que tinham em casa. Os 18 anos podem ter um impacto negativo na decisão final que optam por tomar. Sentem, muitas vezes, necessidade de ter um emprego, garantir alguma compensação financeira para ajudar as famílias, e isso pesa no momento de tomarem uma decisão.
Apesar de tudo, temos vindo a subir os índices de prosseguimento dos estudos entre os nossos alunos. O nosso objectivo é manter essa subida e chegar aos 70% de conclusão. Temos muito caminho a percorrer. Como referi, estamos alinhados ao nível das percentagens nacionais, com uma taxa um bocadinho superior àquilo que regista o ensino regular.
“OS NÍVEIS DE EMPREGABILIDADE SÃO ALTOS”
CL – Existem dados sobre a percentagem de alunos formados na Escola que, terminado o curso, tenham encontrado trabalho na sua área de formação?
CM – O índice de empregabilidade depende dos cursos. Os níveis de empregabilidade são altos, sobretudo em determinados cursos de Conservação e Restauro, com quase 100%, caso eles queiram trabalhar dentro da sua área de formação. Mas depois eles nem sempre querem. A nossa principal preocupação é promover formas alternativas mais estimulantes, mais apetecíveis, por forma a que acabem a escolaridade obrigatória.
Apesar de ainda existir o estigma do Ensino Profissional, ele deve ser visto como uma alternativa séria ao ensino regular. Apostamos cada vez mais no prosseguimento dos estudos. Temos vindo, felizmente e paulatinamente, a crescer neste domínio.
CL – A CMS, enquanto entidade proprietário da Escola, interfere de alguma forma na criação de determinados cursos que estejam mais de acordo com as suas necessidades de mão-de-obra especializada?
CM – A Câmara não interfere. Nós temos é um Plano Local de Educação que define quais são as necessidades de formação e de trabalho na região de Sintra. Foi feito um estudo académico com a Universidade de Coimbra, que fez esse levantamento, quais são os ‘clusters’, quais são as necessidades de formação e quais são as necessidades sentidas pelo mercado de trabalho. Toda a nossa formação está alinhada com isso.
CL – Pode dar-nos alguns exemplos de trabalhos realizados em monumentos de Sintra com a participado de alunos da Escola?
CM – Em vários monumentos. No Palácio de Monserrate (tectos e arcos em estuque), Palácio Nacional de Queluz (pintura mural), Palácio da Vila de Sintra, Palácio da Pena (equipamento de cozinha), Quinta da Regaleira (cantarias), Quinta Nova da Assunção, Quinta da Ribafria e vários outros.
CL – Com que apoios tem contado a Escola, para além da CMS?
CM – A Escola é financiada pelo Ministério da Educação. Contamos com um financiamento anual para cada uma das turmas que abrimos, mas o grande investimento que temos é sem dúvida proveniente da CMS. Só no edifício que ocupamos actualmente, o investimento em obras, sem incluir o equipamento, já ascende a mais de dois milhões de euros. Esse investimento não poderia ter sido feito de outra forma. É isso que nos distingue de todas as outras escolas: esta possibilidade de melhoria contínua, que só é possível por pertencermos à CMS. Sempre tivemos todo o apoio e confiança do executivo camarário, que sempre acolheu as nossas sugestões de forma quase incondicional.
CL – Quem pode inscrever-se nos cursos da EPRPS?
CM – As condições de frequência dos nossos cursos são possuir o 9.º ano de escolaridade completo e ter idade inferior a 20 anos, mas os alunos chegam cada vez mais cedo. Temos muitos jovens que ainda não completaram os 15 anos. E vêm cada vez mais por vocação, com vontade de ter mesmo esta formação específica.
CL – Quais os valores de inscrição nos cursos leccionados pela EPRPS?
CM – Os nossos cursos são gratuitos.
“SOMOS SEMPRE NECESSÁRIOS”
CL – O Património de Sintra está bem preservado?
CM – O património de Sintra vai muito para além do que é o património municipal. A esmagadora maioria do património é privado. A grande maioria do património municipal está bem preservado. Está bem preservado, mas somos sempre necessários. Para manter o património em bom estado, todos os anos tem de ser intervencionado, todos os anos tem de haver manutenção. A exposição a estas fantásticas condições climatéricas que temos em Sintra também expõem os nossos monumentos a outro tipo de desafios, pelo que a manutenção é quase uma exigência anual.
CL – A Escola tem sido procurada por entidades particulares para ajudar nessa manutenção.
CM – Muitas, mas temos esta condicionante de sermos uma entidade pública. Quando somos contactados para fazer esse tipo de serviços, explicamos que não podemos, no âmbito do nosso enquadramento legal. E respondemos nesse sentido. Não trabalhamos para entidades privadas por força do contexto específico que temos.
CL – A EPRPS tem parcerias com escolas internacionais. Troca de alunos? Também forma alunos estrangeiros?
CM – Ainda recentemente, tivemos uma reunião com a Agência Nacional Erasmus+ e estamos a elaborar um projecto para o próximo ano civil de 2025. Podemos vir a ter um projecto Erasmus+ no âmbito de três cursos. Para já, queremos levar os nossos alunos para o estrangeiro. Receber alunos de fora ainda não.
CL- Com que países estão interessados em colaborar no âmbito do programa Erasmus+?
CM – Em Conservação e Restauro, diria que, naturalmente, Itália ou Espanha. Na Dança, Espanha. Em Design, se calhar mais os Países Baixos. Nós temos de escolher parceiros que tenham uma oferta semelhante à nossa.
CL – Quais são as maiores dificuldades que a EPRPS enfrenta?
CM – O nosso principal objectivo é o combate ao abandono escolar. Esse é o principal desafio que enfrentamos. Com um ensino diferenciador, que o Ensino Profissional oferece, tentamos que os nossos projectos sejam de tal forma aliciantes que contagiam positivamente para as disciplinas que, por vezes, são menos apelativas, como a Matemática, a Físico-Química e a Geometria Descritiva. Tentamos, através da multidisciplinaridade das disciplinas, que eles fiquem a perceber, por exemplo, porque temos de ter Química em Conservação e Restauro. Desenvolvem a actividade que têm prevista, mas no contexto prático e a coisa torna-se mais aliciante. E é este o nosso principal desafio: manter os alunos no sistema de ensino e a conclusão do seu percurso formativo e escolaridade obrigatória.
CL – No final do ano lectivo, organizam algum evento que permita dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelos alunos, uma montra onde possam mostrar o que fizeram?
CM – Normalmente, publicamos no nosso site e redes sociais tudo o que são intervenções dos nossos alunos. E temos também a Gala, que começámos a realizar no ano passado, que é totalmente produzida por eles, com Música, Dança e Representação. Gala essa que iremos repetir este ano.
Organizamos também exposições de Fotografia, por exemplo, no MU.SA (Museu das Artes de Sintra). No ano passado, trabalhámos ainda num projecto com os SMAS (Serviços Municipalizados de Sintra) e com o Gabinete Médico-Veterinário de Sintra, denominado ‘De Patas Dadas com a Sustentabilidade’. Este projecto, realizado com fotografias dos nossos alunos, juntou a causa animal de alguns animais que estavam no nosso Gabinete Médico-Veterinário com a causa da sustentabilidade ambiental.
CL – A oferta formativa da EPRPS está limitada à faixa mais jovem da população em idade escolar?
CM – Para além dos cursos profissionais, nós disponibilizamos também cursos de formação abertos à comunidade, que não dão uma certificação formal, mas que servem, sobretudo, para garantir uma aquisição de conhecimentos específicos. Estes cursos decorrem, normalmente, aos sábados de manhã, durante um mês, com um total de 25 horas. As pessoas interessadas podem inscrever-se mediante o pagamento de 25 euros.
Desenvolvemos ainda uma parceria com o instituto Politécnico de Tomar para a oferta de Cursos Técnicos Superiores Profissionais. Estes cursos são destinados a adultos que tenham concluído o 12.º ano e dão mais um nível de qualificação de grau 5.
CL – Ao fim de 10 anos à frente da EPRPS, o que é que mudou na sua perspectiva em relação ao património?
CM – Fiquei a conhecer muito mais coisas. Esta não é a minha área de formação, mas sempre foi algo que me fascinou. Se fosse hoje, eu teria gostado de fazer o curso de Conservação e Restauro. Adoro esta área, sem dúvida. Às vezes, gosto de experimentar uma coisa ou outra. Este tipo de trabalhos dá-me imensa tranquilidade. Adoro os estuques. Gosto muito. Apesar de o gesso ser um material um bocadinho desprezado, eu acho que se fazem verdadeiras maravilhas nesta área. Também gosto muito de cantaria e escultura.