Associação de Carnaxide promove eventos culturais

Ao longo de 20 anos, as amigas, Sofia Gonçalves, Alexandra Infante, Ana Caseiro, Georgina Rodrigues e Marta Amorim, foram trocando livros entre si, debatendo sobre literatura e explorando livrarias solidárias. O seu vínculo, porém, vai além de amizade e do gosto comum pelos livros, partilhando também um enorme sentido de comunidade e o desejo de fazer a diferença na vida dos outros. Com efeito, pelo caminho foram desenvolvendo pequenos projetos de solidariedade. Essas experiências foram sementes que plantaram juntas, e agora, unidas pelo espírito solidário e pelo amor aos livros, encontram-se a escrever um novo capítulo na sua jornada. A Associação Solidária Heróis com Capa, é um tributo à amizade, à solidariedade e ao poder transformador da literatura. 

O Correio da Linha falou com Marta Amorim que nos deu a conhecer o espírito de união e a determinação que caracterizam a Associação que está pronta para fazer do mundo um lugar melhor, uma página de cada vez.

O Correio da Linha (CL) – Como surgiu a ideia de criar esta associação?

Marta Amorim (MA) – Antes de nos tornarmos a Associação Solidária Heróis com Capa, éramos a Book-A-Wish, uma ideia oriunda da mente criativa da Sofia Gonçalves. Enquanto colaboradora do Hospital Beatriz Ângelo, a Sofia foi impactada pelo efeito positivo das livrarias solidárias. A sua visão era simples: estabelecer uma pequena livraria solidária dentro do hospital, vendendo livros usados para apoiar a área da pediatria. A proposta foi apresentada à Administração do hospital e prontamente acolhida. Assim, a Sofia começou a divulgar a ideia entre os amigos, que começaram a entregar-lhe livros. Contudo, o cenário mudou com a eclosão da pandemia, e o projeto acabou por não se concretizar, até porque a Sofia também deixou o hospital por motivos profissionais. Naquela época, ela já tinha cerca de 800 livros armazenados na sua garagem. Foi então que ela nos abordou, e decidimos procurar um local para vender os livros e doar os lucros a uma instituição de solidariedade social.

A Sofia já era voluntária na Fundação Make-A-Wish, que possuía uma plataforma para a arrecadação de donativos dos diversos eventos que apoiavam. Decidimos unir forças com eles. Em abril de 2022, foi-nos cedido um espaço no Dolce Vita de Miraflores, onde nos reuníamos aos sábados à tarde – considerando que todas nós mantemos os nossos empregos – para trocar livros por doações. Seguíamos o conceito de “estrelas”, utilizado pela Make-A- Wish. Uma estrela valia inicialmente 2100€, passando posteriormente a valer 2500€… o montante necessário para realizar o desejo de uma criança ou jovem apoiado pela instituição.

A nossa expectativa era modesta: esperávamos preencher uma estrela da Make-A-Wish com os livros que tínhamos, realizar o desejo de uma criança e encerrar a nossa iniciativa por ali. No entanto, sem que dessemos por isso, tudo ganhou uma dimensão maior do que esperávamos, e desencadeou-se um efeito de bola de neve, com livros a chegar constantemente.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Perante tal situação o que decidiram fazer?

MA – Optámos por dar continuidade ao nosso projeto… até o tornarmos em algo mais formal. Tivemos que deixar o espaço do Dolce Vita Miraflores, e a 23 de setembro de 2022, mudámo-nos para o estúdio de dança Tribus, em Linda-a-Velha, que gentilmente nos cedeu uma das suas salas. Naquela altura, já tínhamos preenchido 6 estrelas da Make-A-Wish – atualmente já preenchemos 7 – e, além da nossa loja, começámos a promover ações em escolas. Organizávamos feiras do livro nas escolas, onde as crianças traziam livros que vendíamos entre elas e as suas famílias, e o mesmo acontecia em empresas. No Natal, realizámos uma iniciativa em que promovemos, no âmbito dos tradicionais jantares de Amigos Secretos, trocas de livros nossos, mantendo o mistério do presente. Portanto, começámos a implementar uma série de iniciativas e percebemos que queríamos ampliar o nosso apoio a outras causas solidárias além da Make- A-Wish.

Começámos então a traçar a transição de um simples grupo de cinco amigas empenhadas em atividades solidárias para a constituição de uma associação. Em outubro de 2023, a Heróis com Capa nasceu. Apesar de mantermos nossa ligação com a Make-A- Wish, neste momento apoiamos outras instituições que se dedicam às mais diversas causas.

CL – Entretanto também tiveram de mudar a vossa localização estando agora instaladas no Mercado Municipal de Carnaxide…

MA – De facto, o espaço no Tribus começou a ser reduzido para nós, e a própria Tribos demonstrou interesse em rentabilizar o espaço. Quando essa questão surgiu, não hesitámos em agir. Apresentámos um pedido à Câmara Municipal de Oeiras (CMO), que demonstrou desde logo interesse no nosso trabalho e empenhou-se em ajudar-nos a encontrar um novo local para o nosso projeto.

Desde janeiro deste ano, estamos neste espaço que para nós é perfeito. A presença de luz solar direta é uma vantagem que nunca tivemos antes. Alegra-nos bastante termos a nossa livraria inserida num bairro, numa área de convívio, onde podemos ver famílias a passear e a brincar, pessoas a caminhar com os seus cães… aliás, uma das primeiras coisas que fizemos ao chegar aqui foi colocar uma tigela de água à porta para os cães que por ali passam. A mudança para o Mercado Municipal de Carnaxide representou não apenas uma nova localização, mas também uma nova fase para a nossa associação. Estamos entusiasmadas com as oportunidades que este espaço nos oferece para expandir as nossas atividades e continuar a fazer a diferença na vida das pessoas da nossa comunidade.

CL –Já conseguiram chegar a diversas associações e fazer a diferença na vida de várias pessoas. Consegue enumerar algumas das atividades que já promoveram?

MA – Desde o início, era nosso objetivo estabelecer mini-bibliotecas em diversas associações e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Um exemplo significativo foi a parceria com a Fundação Ronald McDonald, através da qual criámos bibliotecas nas Casas Ronald McDonald de Lisboa e do Porto. Essas bibliotecas foram destinadas tanto às famílias ali hospedadas. Dessa forma, os pais que acompanham os seus filhos hospitalizados têm à disposição livros que podem levar consigo para o hospital, proporcionando-lhes momentos de leitura enquanto aguardam os procedimentos médicos que os seus filhos têm de realizar. Também disponibilizámos uma seleção de livros aos voluntários da Associação Acreditar para serem lidos às crianças no Instituto Português de Oncologia (IPO), optando por histórias mais alegres para aliviar o peso do momento. Recentemente, entregámos livros à CrescerBem, uma Organização Não Governamental (ONG) que atua no Hospital da Estefânia, com o mesmo propósito: proporcionar momentos de leitura e conforto às crianças, através de histórias positivas e inspiradoras. Temos ainda uma mini-biblioteca no Centro Social e Paroquial do Casal de São Brás.

Contudo, queremos ir além das crianças e idosos, alargando as nossas atividades a outras comunidades, como levar livros a pessoas em situações de vulnerabilidade, reconhecendo o poder transformador da leitura em qualquer contexto. Recentemente, recebemos um pedido de um senhor que reside num lar e nos pediu para visitá-lo e ler-lhe histórias. Uma de nossas voluntárias ofereceu-se prontamente para essa nobre missão, e estamos a fornecer-lhe os livros necessários para levar um pouco de alegria e conforto ao coração desse senhor, que já não pode ler, mas que ainda aprecia uma boa história.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Os lucros alcançados mensalmente revertem para uma associação de solidariedade social. Com se realiza este processo?

MA– A Direção escolhe a associação que deseja apoiar e anunciamos a decisão nas nossas redes sociais. O primeiro passo é entrar em contato com a instituição e identificar quais são as suas necessidades mais urgentes no momento. Por exemplo, em março, apoiámos a União Zoófila, tendo sido informadas de que precisavam de ração para cães e gatos com necessidades específicas – nomeadamente rações hipoalergénicas e gastrointestinais. Neste caso podemos proceder de duas formas: ou compramos diretamente a ração e entregamos-lhes, ou eles realizam a encomenda e nós pagamo-la. Procuramos sempre garantir que a nossa oferta seja algo palpável, ou seja, em forma de bens materiais, e não apenas em dinheiro. Também apoiámos a Casa do Parque, em Carnaxide, que nos expressou o desejo de realizar melhorias nos quartos das crianças que acolhem. Então solicitaram-nos vales no valor do donativo em lojas de móveis.

Por recomendação da autarquia, em dezembro, apoiamos o IDEQ, uma organização que assiste pessoas em situação de sem-abrigo na zona de Algés. Oferecemos-lhes fatos de treino novos, cuidadosamente embrulhados para celebrar a época festiva.

À associação Coração Amarelo, em Oeiras, que planeava realizar um lanche de convívio com cerca de 170 idosos e oferecer-lhes um cabaz de Natal, decidimos contribuir oferecendo uma caixa de bolachas sortidas para cada cabaz.

Durante o mês de abril, estamos a apoiar a ACAPO – Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal, que nos contactou para elogiar o nosso projeto, tendo-nos oferecido, inclusive, um livro em braille.

Todos os meses os valores arrecadados são diferentes, dependendo das vendas. É uma questão de sorte, mas o nosso compromisso em ajudar e fazer a diferença permanece constante.

CL – As pessoas que trabalham na Heróis com Capa são todas voluntárias?

MA – As cinco fundadoras da associação são membros da Direção. Além de nós, contamos com um grupo dedicado de voluntários que nos auxiliam todos os sábados à tarde na livraria. Temos uma pessoa responsável pela coordenação dos voluntários, que elabora uma agenda com base na disponibilidade de cada um. Os nossos voluntários recebem formação e desempenham uma variedade de tarefas na loja, desde receber os livros doados até organizá-los, entre outras atividades.

Foto: Paulo Rodrigues

CL – Como se realiza o processo de doação de livros?

MA – Recebemos todo tipo de livros, exceto dicionários, enciclopédias, manuais e obras muito técnicas. Naturalmente, é fundamental que os livros estejam em boas condições para serem vendidos. O valor de venda varia entre 1 e 5 euros, e o preço encontra-se devidamente identificado na lombada do livro através de uma etiqueta colorida correspondente ao seu valor. Os livros doados não são disponibilizados imediatamente. Primeiro, passam por uma triagem realizada por nós, onde são avaliados e na qual estabelecemos o seu preço. Em seguida, são categorizados e colocados na livraria conforme a sua temática. Possuímos diversas categorias, incluindo autores de língua portuguesa e estrangeira, e os livros são organizados por géneros como romances, ficção histórica, thrillers, policiais, obras adaptadas para filmes, humor, saúde, economia e política, etc. Recentemente, a procura por banda desenhada e mangá tem aumentado, e temos clientes fiéis nesses segmentos. Além disso, oferecemos livros em várias línguas, como inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. Também disponibilizamos uma vasta seleção de livros para crianças e jovens, tanto em português como noutras línguas.

É importante ressalvar que não podemos vender livros com menos de 2 anos de publicação. Atualmente, estimamos ter cerca de 10 mil livros disponíveis em catálogo.

CL – Promovem uma iniciativa interessante que reúne escritores e leitores… 

MA – Sim, é o nosso Clube de Leitores Solidários, dinamizado por uma das nossas voluntárias. Trimestralmente, ela estabelece um tema e convida um ou vários escritores a interagirem com os leitores, promovendo um debate em que se analisa e discute o tema proposto. O primeiro encontro foi sobre escritoras mulheres, no qual recebemos algumas autoras do clube de mulheres escritoras para discutir a escrita no feminino. O segundo tema abordado foi thrillers e policiais, contando com a presença de 4 autores que debateram a estrutura e a escrita para esse género literário.

No final de abril, teremos a terceira sessão deste Clube de Leitores solidários. É de salientar que este não é apenas um momento de partilha de ideias e experiências entre escritores e leitores, tendo também uma função solidária. Todas as pessoas que se inscrevem e participam no clube contribuem para uma causa solidária. Essa causa pode ser a que a livraria se encontra a apoiar esse mês, ou outra escolhida pelos próprios participantes. Por exemplo, a questão da Casa do Parque foi sugerida pelo próprio clube de leitores, não sendo uma iniciativa direta da livraria. Portanto, todas as atividades que realizamos acabam por contribuir para diferentes causas solidárias.

Este novo espaço permite-nos dinamizar mais eventos deste tipo. Gostaríamos, por exemplo, de realizar iniciativas direcionadas a crianças e jovens, visando estimular o gosto pela leitura e pela escrita.

CL – Quais são os objetivos para o futuro?

MA – O que todas nós desejamos é que a Heróis com Capa se perpetue. Queremos que os livros continuem a ser lidos e que não fiquem apenas como objetos decorativos, mas sim que tenham uma continuidade, sendo relidos e passando adiante para fazer bem a alguém. Queremos que o livro seja um instrumento de transformação, um verdadeiro herói. E juntas encontramos constantemente formas de garantir que os livros continuam a fazer o bem. Seja através de eventos, parcerias ou outras iniciativas, estamos sempre a pensar como podemos maximizar o impacto positivo dos livros. Acreditamos firmemente no poder transformador da literatura.

O nosso grande objetivo é ampliar o alcance das nossas ações, apoiando causas cada vez mais próximas de nós. Às vezes, as pequenas causas são aquelas em que podemos fazer uma maior diferença. Queremos focar-nos em causas onde a nossa contribuição faça sentido e onde possamos realmente fazer uma mudança significativa. O importante é que possamos continuar a utilizar os livros como uma ferramenta para o bem, alcançando e impactando positivamente cada vez mais pessoas na nossa comunidade.

NOTA: Artigo escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Foto: Paulo Rodrigues

Autor: Raquel Luís

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