Fernando Viana Mendes: “O papel dos jornais locais é dar voz às populações”

Este ano, assinala-se o 50.º aniversário do 25 de Abril de 1974, que veio pôr termo a um regime totalitário, ditatorial, liderado por António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980), abrindo as portas do País a ventos de mudança que trouxeram a Liberdade e a Democracia a um povo amordaçado ideologicamente e prisioneiro do atraso em que Portugal estava mergulhado desde 1926, quando teve início a Ditadura Nacional, a que se seguiu o Estado Novo (1933-1974).

Com os títulos dos jornais da altura a reflectirem essa alteração decorrente do conturbado período revolucionário que se seguiu à Revolução dos Cravos, impulsionados pelas várias tendências ideológicas e partidárias surgidas em Portugal, em luta por uma estabilidade política e social que haveria de chegar, também a Imprensa Regional, de âmbito local, sentiu a pressão desses novos tempos de mudança, rapidamente expressos nas suas primeiras páginas.

Fernando Viana Mendes, actualmente com 77 anos, foi um dos directores de jornais regionais que acompanhou de perto a adaptação dos meios de comunicação locais ao novo regime democrático, libertados do jugo impiedoso do chamado ‘lápis azul’, o instrumento de censura profusamente utilizado no País até 24 Abril de 1974, que filtrava tudo o que era considerado incómodo para o sistema antidemocrático vigente até então e negava aos portugueses a desejada liberdade de Imprensa. 

O jornal ‘O Correio da Linha’ esteve à conversa com este arquitecto de formação, antigo funcionário da Câmara Municipal de Cascais, sobre estes e outros assuntos relacionados com a Imprensa Regional, à qual esteve ligado desde 1964. Apaixonado pelo Desporto e pelo Jornalismo, enfrentou alguns dissabores ao longo do trajecto, que recorda sem rancores ou amarguras. Pelo caminho, encontrou e fez parte da Academia do Bacalhau do Estoril. Fique a saber mais sobre o seu percurso. 

Foto: Paulo Rodrigues

“SENTI UMA SENSAÇÃO DE GRANDE EXPECTATIVA”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Recorda-se de onde estava e o que fazia quando tomou conhecimento do que estava a acontecer no dia 25 de Abril de 1974?

Fernando Viana Mendes (FVM) – Foi um dia normal para mim, estava na Câmara Municipal de Cascais (CMC) a trabalhar. 

CL – O que sentiu? 

FVM – Senti uma sensação nova, de grande expectativa. Era mais de expectativa. Naquela altura, não sabia bem o que é que podia acontecer, como iria terminar o dia. As coisas eram ainda muito difusas. 

CL – Como é que acompanhou os acontecimentos que estavam a decorrer?

FVM – Ouviam-se na Rádio excertos de comunicações da GNR e da tropa. Era uma situação estranha, anormal. E também eram difundidos comunicados do Movimento das Forças Armadas (MFA). Era por aí, pela Rádio, que íamos acompanhando o que estava a acontecer.      

CL – Nesse dia, chegou a ir até Lisboa ver o que estava a passar-se?

FVM – Não, fiquei em Cascais. Acompanhei os acontecimentos através do que era divulgado na Rádio. Estive atento ao evoluir da situação. Tinha que estar, pois era algo de anormal, de grande importância para o País, mas não fui até Lisboa.

CL – Como encarou o 25 de Abril? O que representou para si?

FVM – Na altura, eu trabalhava na CMC como desenhador. Mas também já trabalhava nos jornais há alguns anos. Não tinha a experiência política, mas conhecia os problemas do País, tinha a experiência de ser censurado. A palavra Liberdade tinha sempre um peso muito grande. 

CL – Como viveu os primeiros dias da chamada Revolução dos Cravos? Tentou ir até Lisboa nos dias seguintes?

FVM – Não, fiquei sempre em Cascais. Não fui daqueles entusiastas do 25 de Abril que foi logo a correr para Lisboa. Continuei a viver o meu dia-a-dia, normalmente, embora tenha passado por alguns dissabores por aquilo que era publicado no jornal. Fiquei crucificado durante muito tempo. Ser solidário só por ser solidário, sem estar ligado a ideologias, tem inconvenientes… Mas também tive muitas alegrias pelo facto de andar na luta. 

CL – Entre a Arquitectura e o Jornalismo, qual foi a sua principal paixão?

FVM – A paixão maior sempre foi mais o Jornalismo. Fui para Arquitectura acidentalmente. Não quer dizer que não goste da Arquitectura. Se assim fosse, não teria continuado e terminado o curso. Quando optei por tirar um curso, fui para Sociologia, que é a minha área. Estive a tirar um curso no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa. Nos dois primeiros anos, tinha Sociologia e Economia e a partir do terceiro ano era Sociologia. Quando chegava ao fim, era Sociologia Urbana, que era aquilo que eu pretendia. Só que o curso demorou só três meses, porque aquela escola era muito revolucionária e o Ministério decidiu fechar aquilo. Nesse ínterim, fiquei pendurado, até que um colega que já estava inscrito em Arquitectura me desafiou a seguir-lhe o exemplo, o que acabei por fazer. 

CL – Quando ocorreu o 25 de Abril, era editor do ‘Podium’, um jornal local sediado em Oeiras, de periodicidade mensal… 

FVM – O ‘Podium’ começou por ser um jornal desportivo. Para sobreviver, a nossa base de receita era a Publicidade, sobretudo a proveniente da publicação das escrituras. Devido a isso, ainda antes do 25 de Abril, para manter essas receitas, o jornal deixou de ser desportivo e passou a ser regional e de âmbito generalista. 

Mais tarde, começaram a aparecer colaboradores, malta nova de Cascais que andava na Universidade. Nessa altura, passou a haver uma linguagem nova no jornal. A seguir ao 25 de Abril, em determinada altura, ficámos ali entre o ‘Notícias da Amadora’ e o ‘Correio do Funchal’, não era um órgão do Partido Comunista, não era um órgão dos Maoístas, andava ali à solta ao lado da Revolução. 

Antes do 25 de Abril, enquanto não entrou essa malta, era um jornal normal, nada de especial, mas, quando entraram esses colaboradores, universitários, o jornal passou a ter uma linha mais interventiva. 

CL – Isso teve implicações?

FVM – A partir daí, o jornal começou a criar alguns problemas devido à abordagem de alguns temas. Antes do 25 de Abril, nunca estivemos ligados ao regime, nem éramos apoiados pela Câmara de Oeiras. Depois disso, com a entrada dos novos colaboradores, o ‘Podium’ passou a ser um jornal mais interventivo, de Esquerda. Contudo, houve uma preocupação muito grande, que foi evitar o ‘grande papão’, que era o PCP, mas acabou por entrar, pela porta do cavalo, o PCP (R) – Partido Comunista Português (Reconstruído) –, que era muito mais radical. 

Mais tarde, já depois de eu ter saído, o jornal tornou-se um bocado um órgão da UDP (União Democrática Popular), um partido político marxista nascido no final de 1974. 

CL – Como viveu a mudança operada na linha editorial do jornal? 

FVM – Mais do que uma contestação, ou uma ideologia de Esquerda, a nossa acção era mais no sentido da defesa da Liberdade. Eu, como responsável na altura, não tinha formação política, não me debruçava sobre as questões políticas. Eu dedicava-me mais ao Desporto, praticava várias modalidades.   

PRIMEIRA PÁGINA INTEIRAMENTE DEDICADA AO 25 DE ABRIL

CL – Lembra-se da capa da primeira edição do ‘Podium’ depois da Revolução?

FVM – Sim, na edição de Maio de 1974, a nossa primeira página foi inteiramente dedicada ao 25 de Abril. Tinha a palavra ‘Liberdade’, em tamanho grande, no topo da página, e vários títulos alusivos à revolução, acompanhados por fotografias da época, uma delas com Mário Soares e Álvaro Cunhal lado a lado. Esses títulos eram: ‘Nova Era na História de Portugal’, ‘Recuperada finalmente a Liberdade’, ‘Confiança absoluta no Novo Portugal’ e ‘Derrubado o regime fascista’. 

CL – Antes do 25 de Abril, a Imprensa Local também era alvo da censura prévia. Lembra-se de um caso concreto que o tenha envolvido?

FVM – Tal como acontecia com os outros jornais, os nossos textos também eram submetidos a censura prévia. O controlo era feito através da gráfica onde o jornal era impresso, que fazia essa ligação ao Secretariado Nacional de Informação. Lembro-me de um caso ocorrido num outro jornal, ‘A Nossa Terra’, de que fui chefe de redacção em 1972 e 1973, gerado por uma notícia sobre uma escola em Sassoeiros (Carcavelos, Cascais) que tinha os vidros partidos. Aquilo já estava assim há meses. Eu fui lá, constatei a situação da escola, tirei fotografias e publicou-se a notícia, a chamar a atenção da Câmara. Não foram feitos comentários políticos nem nada, foi apenas uma constatação, um facto verificado, mas a notícia acabou por ser cortada pela Censura.  

CL – A Imprensa Local ainda tem espaço para existir, pode servir de interlocutor das reivindicações das populações junto dos poderes locais?

FVM – Sim, pode ser uma força de apoio ao desenvolvimento. Pode ser um interlocutor entre os desejos e aspirações das populações junto dos órgãos do poder local. Pode chamar a atenção. O papel dos jornais locais é levantar questões, ir atrás delas, dar voz às populações, fazer um escrutínio da acção dos órgãos do poder local. Existe uma intervenção social. Querer saber, por exemplo, a razão de uma dada rua em mau estado não estar ainda arranjada. 

“A IMPRENSA LOCAL SÓ PODE SUBSISTIR SE TIVER DINHEIRO”

CL – Quais as principais dificuldades que a Imprensa Local enfrenta?

FVM – O financiamento, obter receitas que permitam manter os projectos. A Imprensa Local só pode subsistir se tiver dinheiro. Nem sempre existe critério de equidade na atribuição de verbas para apoiar os jornais locais. As câmaras não têm que financiar os jornais, mas têm que publicar os anúncios, uma forma de ajudar, de modo equitativo. Dar a um e dar a outro e não excluir alguns. Para todos os efeitos, não têm o direito de cortar a publicidade por questões editoriais.

Durante o meu percurso, tive de lutar, também, contra várias outras dificuldades. Lembro-me que tinha de ir recolher os originais aos colaboradores, deslocava-me quase sempre de comboio. As informações vinham apontadas num papel, depois eu tinha de passar tudo à mão, às vezes reescrever as peças jornalísticas, fazer uma revisão… enfim, era difícil cumprir prazos de entrega dos materiais. 

Na altura, a maioria dos colaboradores não recebia dinheiro pelo que escrevia para o jornal, era só pelo prazer de ter as peças publicadas, de ver o nome no jornal, o que fazia com que os custos de produção fossem extremamente baixos. Era praticamente só a tipografia. Hoje, já não é assim, há outro grau de exigências.  

CL – Que funções desempenhava na Câmara Municipal de Cascais?

FVM – Estive na CMC durante 40 anos. Fui desenhador em vários projectos, parques, habitacional, um pouco de tudo, trabalhei sobretudo na área de Urbanismo. Fui também chefe de divisão. Estive à frente do Plano Director Municipal. Dentro da Aquitectura, estive sempre ligado ao Planeamento. 

CL – Com que presidentes da CMC trabalhou?

FVM – O primeiro presidente com quem trabalhei foi com o Engenheiro António Azevedo Coutinho (presidente no período 1962-1970). Também trabalhei com Georges Alphonse Dargent (1986-1992), uma jóia de pessoa. Tive uma excelente relação com José Luís Judas (1993-2001). Fui amigo de António Capucho (2001-2011), com quem também trabalhei, fui assessor dele. Enfim, trabalhei com vários outros presidentes, mas estes foram aqueles com quem tive um relacionamento mais próximo.  

CL – Uma ideia para a CMC de hoje executar?

FVM – Há um projecto em curso, que tem andado para a frente e para trás, e que faz muita falta, que é a Central de Camionagem, integrada no Interface de Transportes. 

CL – O que mais gosta e menos gosta em Cascais?

FVM – Devo dizer que gosto de tudo em Cascais. A única coisa menos boa que posso referir é algum desenvolvimento urbano não muito bem controlado. 

CL – É compadre da Academia do Bacalhau do Estoril. De que se trata?

FVM – É uma instituição de solidariedade social, de malta que se diverte a comer e a beber e a ajudar. É um movimento nacional e internacional, uma associação cívica sem fins lucrativos que desenvolve actividades filantrópicas. São tertúlias de amigos, sem finalidades políticas, religiosas ou comerciais.

CL – Quando foi criado este movimento? 

FVM – A primeira Academia do Bacalhau foi criada na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, em 1968, no seio da comunidade portuguesa que ali residia ou trabalhava. Na altura, as pessoas reuniam-se num restaurante local, o ‘Chave d’Ouro’, para comerem bacalhau. Naquele tempo, o bacalhau não era frequente naquela região e o grupo, que se encontrava à sexta-feira, passou a ser conhecido como o Grupo do Bacalhau. Durante a refeição, costumavam abordar e debater vários problemas sociais. Uma família que precisava de ajuda para trasladar o corpo de um familiar para Portugal. Um jovem bom estudante que precisava de uma bolsa de estudo para continuar os estudos. E casos semelhantes. Então, o grupo cotizava-se para ajudar. Até que houve um elemento do grupo que se lembrou de criar uma instituição que pudesse aglutinar a portugalidade, a solidariedade e o convívio. Foi assim que foi criada a primeira Academia do Bacalhau. 

Hoje, existem diversas academias do bacalhau em várias cidades e continentes. Uma delas é a Academia do Bacalhau do Estoril, que promove diversos eventos solidários, entre os quais almoços e jantares, que antigamente eram quinzenais e agora são mensais. Tudo para obter fundos para entregar a instituições de apoio social locais. 

CL – Quando foi criada a Academia do Bacalhau do Estoril?

FVM – Esta academia foi fundada em 1995. O nosso primeiro almoço decorreu no dia 11 de Março, na Casa da Ponte, um restaurante de um ex-residente em Joanesburgo localizado em Manique de Baixo, na freguesia de Alcabideche, Cascais.

CL – Quais os seus propósitos?

FVM – As academias do bacalhau têm como objectivos: fomentar, encorajar e desenvolver laços de amizade, cooperação e confraternização, independentemente da posição social e grau de cultura de cada um dos seus compadres; fomentar, encorajar e desenvolver relações de convívio e amizade entre as diferentes comunidades; fomentar, encorajar e desenvolver iniciativas que contribuam para a difusão da cultura e valores tradicionais dos países onde existam academias, e fomentar, encorajar e desenvolver a assistência moral e material a instituições de beneficência.

CL – Que funções desempenhou na Academia do Bacalhau do Estoril? 

FVM – Fui presidente nos anos 1999, 2000 e 2007.

Foto: Paulo Rodrigues

EDITORIAL DEDICADO À LIBERDADE

Em 1974, a edição de Maio do jornal ‘Podium’, fundado, em 1970, por Fernando Viana Mendes, que foi editor executivo desta publicação até 1975, abriu com um editorial, intitulado ‘Liberdade’, totalmente dedicado à acção desenvolvida pelos militares do Movimento das Forças Armadas, que acabou por abrir portas à implementação de um sistema democrático em Portugal. E logo ficou esclarecida a posição tomada pelos responsáveis editoriais do jornal. Aqui fica o texto: 

“O grito soou, enfim, por todo o Portugal. Após cerca de meio século, o povo português reconquistava a liberdade. Numa rápida e perfeita operação, o Movimento das Forças Armadas destituía o regime fascista e permitia o diálogo franco dos diversos partidos, a maioria a viver, até então, na clandestinidade. 

´Podium’ não poderia, nem deveria, ficar indiferente a este marco da História. Passado o tempo da “outra senhora”, torna-se indispensável a abertura total às diversas correntes políticas, para um perfeito esclarecimento da opinião pública, até então, por força das circunstâncias, alheia aos problemas nacionais. Durante anos e anos fomos obrigados a não pensar, porque não podíamos ter opinião. Liberdade coarctada. O terror era imposto como medida de defesa. Tal como dizia então o nosso camarada Almeida e Sousa, “os comunistas não comem crianças ao pequeno almoço”. 

Depreende-se, portanto, que vamos passar a dedicar a maior atenção ao movimento político que se desenrola nesta fase de preparação para eleições, com o fim único de procurar esclarecer o mais imparcialmente possível o público ledor. 

E tal como antes, ‘Podium’ é “uma tribuna livre onde se podem discutir temas de validade”. Só que acrescentamos: “…e com a verdadeira liberdade que a actual situação justifica”. A circunstância de não pertencermos a qualquer grupo político ou ideológico obriga-nos a fazer, efectivamente, um trabalho de isenção. O mais honesto possível, na tentativa, repetimos, de esclarecer a opinião pública. 

Aproveitamos até a oportunidade para convidar os membros dos diversos movimentos a colaborarem neste importante período de esclarecimento. 

Esta edição, embora saindo atrasada, ainda foi confeccionada sob os condicionalismos antigos. Esperamos melhorar.”

Autor: Luís Curado

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