Decorria o ano de 1794, quando da família real se instalou no Palácio Nacional de Queluz e mandou edificar o espaço hoje ocupado pelo Regimento de Artilharia Antiaérea 1 (RAAA1) para albergar a guarda real. Desde então o local foi ocupado por diversas unidades militares – cujas placas identificativas se encontram ainda hoje presentes no quartel, como forma de honrar a sua história. Em 1927 é ali instalada a primeira unidade artilharia antiaérea sendo que a unidade principal surge em 1943 constituída por um grupo misto de defesa antiaérea de Lisboa. Em plena II Guerra Mundial, o então Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, com o objetivo de proteger a cidade de Lisboa, criou cerca de 150 posições, divididas entre o norte e o sul da respetiva aérea, munindo-as do devido material de defesa antiaérea. Estavam destacados cerca de 5000 militares que cobriam um perímetro de 250 km quadrados. Esta operação foi desmantelada em 1948 e, após o 25 de Abril de 1974 o quartel da foi destinado à infantaria…até 1988, quando retornou ao seu foco original: a artilharia antiaérea.
Uma vez que é incumbência do comando preservar e transmitir esta rica história e cultura para às gerações futuras, O Correio da Linha falou com o Comandante do regimento, José Carlos Mimoso que nos deu a conhecer o trabalho levado a cabo pelo regimento e elevou o compromisso do mesmo para com a segurança pública e o bem-estar da comunidade. A entrevista foi seguida por uma visita ao espaço passando pelo salão nobre, pela capela – dotada de uma réplica da cruz usada nas Jornadas Mundiais da Juventude -, pela sala de troféus – onde se encontra a folha de matrícula de Eusébio da Silva Ferreira que ali cumpriu o seu serviço militar obrigatório – culimando numa exposição idêntica à que os jovens ali encontram no âmbito do Dia da Defesa Nacional. Neste espaço encontram-se 3 áreas distintas: o foco principal da RAAA1, ou seja, a artilharia antiaérea, uma zona dedicada ao armamento coletivo para defesa terrestre e também nuclear, biológico, radiológico e químico, e uma última estação onde se encontra o armamento individual e uma componente de formação especifica direcionada aos paraquedistas.
O Correio da Linha (CL) – Em que consiste a defesa antiaérea?
José Carlos Mimoso (JCM) – A função que nos é confiada é a salvaguarda de uma área específica, um encargo que assumimos com determinação e eficácia. O nosso objetivo primordial é neutralizar as ameaças aéreas que possam comprometer a segurança e a integridade do espaço designado, abrangendo uma gama diversificada de perigos que incluem aeronaves, helicópteros, drones e outras formas de intrusão no céu. Operamos em terra, valendo-nos de sistemas de canhão e de mísseis, sendo que, atualmente, possuímos equipamentos mais modernos que representam permitindo-nos enfrentar os desafios mais exigentes e sofisticados que se nos apresentem.
Orgulhamo-nos do facto de sermos o único regimento de artilharia antiaérea, o que nos confere um peso significativo em termos de responsabilidades. Não se trata apenas de uma questão operacional; somos guardiões da doutrina neste domínio, influenciando e moldando as estratégias e táticas que norteiam o combate antiaéreo. Além disso, desempenhamos um papel fundamental na formação e treino das nossas tropas, garantindo que estejam aptas e preparadas para enfrentar qualquer desafio que surja nos céus. A nossa dedicação estende-se também à constante busca por aperfeiçoamento e inovação. Encaramos com seriedade a necessidade de adquirir e incorporar novos materiais de artilharia antiaérea, mantendo-nos sempre à vanguarda do desenvolvimento tecnológico e das melhores práticas no campo da defesa aérea.
MISSÃO
CL – Qual a vossa missão?
JCM – Somos um regimento que depende da Brigada de Intervenção – sediada em Coimbra – e, como sua subunidade, temos a missão de aprontar unidades de artilharia antiaérea, visando não só o benefício imediato da referida brigada, mas também da Brigada de Reação Rápida.
Atualmente, envolvidos numa importante missão internacional, integrando um módulo de artilharia antiaérea na Tailored Forward Presence (tFP) e na Enhanced Vigilance Activity (eVA) da NATO, na Roménia. Este compromisso reveste-se de extrema importância num contexto em que a NATO, em resposta à invasão russa à Ucrânia em 2022, implementou medidas dissuasoras e reforçou a presença das suas forças na fronteira leste. Dentro dessas forças, encontra-se um contingente português, no qual o nosso módulo de antiaérea está integrado. Desde abril de 2022, temos enviado contingentes regularmente para esta missão, sendo que atualmente estamos a preparar o quinto contingente que partirá em maio. Esta missão segue um ciclo semestral, demandando uma constante preparação de um semestre para o próximo.
É importante destacar que, embora tenhamos experiência prévia em missões internacionais, sobretudo de mentoria e apoio ao treino, nomeadamente no Afeganistão e em Timor-Leste, esta é a primeira vez que nos estamos envolvidos numa missão de artilharia antiaérea efetiva. O contingente destacado está equipado com tecnologia de ponta, incluindo radares capazes de detetar aeronaves e helicópteros, além de mísseis Stinger para fazer frente a possíveis ataques aéreos. Este desafio não apenas testa nossa capacidade operacional e técnica, mas também demonstra nosso compromisso contínuo com a segurança internacional e a cooperação multinacional.
CL – Com que meios contam para cumprir a vossa função?
JCM – O nosso principal sistema de defesa aérea reside nos mísseis portáteis Stinger. Contudo, estamos a desenvolver um processo de transição, substituindo os antigos mísseis ligeiros, montados em viaturas, por meio de um programa delineado na lei de programação militar. Esta mudança é imperativa para assegurar uma resposta eficaz frente às ameaças em constante evolução.
No entanto, o caminho rumo ao reequipamento não é desprovido de desafios, especialmente face ao conflito na Ucrânia, que acarretou um aumento vertiginoso nos custos de armamento. A escassez e o encarecimento das armas impõem obstáculos significativos ao avanço do programa de reequipamento. Contudo, permanecemos comprometidos em superar tais adversidades, visando concluir a substituição dos mísseis ligeiros num prazo máximo de dois anos.
Paralelamente à modernização dos sistemas de mísseis, estamos empenhados em fortalecer a nossa capacidade de defesa contra drones, um domínio emergente e crucial. Concentramos os nossos recursos na aquisição de sistemas anti-drone, projetados para detetar, intercetar e neutralizar ameaças aéreas não tripuladas. Esses sistemas abrangem desde a destruição direta dos drones até ao emprego de tecnologias avançadas que permitem assumir o controle do dispositivo ou intercetar sua conexão com o operador.
Um aspeto fundamental que não pode ser subestimado é nosso sistema de comando e controle de artilharia antiaérea. Este sistema desempenha um papel vital na coordenação das operações e na integração harmoniosa das forças aéreas e terrestres. Anualmente, participamos em exercícios internacionais, e este ano, pela primeira vez, estamos a enviar não apenas militares, mas também os nossos sistemas de comando e controle, no caso concreto 2 shelters, para um exercício da NATO na Roménia. Esta iniciativa representa um desafio substancial, mas também uma oportunidade ímpar para demonstrar a nossa capacidade de liderança e cooperação em escala internacional.
CL – Para além da vossa missão principal atuam numa série de outras áreas, nomeadamente no que respeita à segurança e defesa do território nacional e dos cidadãos que ações têm levado a cabo?
JCM – Como qualquer instituição militar, para além da função que nos é inerente, desenvolvemos um leque de competências essenciais em matéria de segurança e defesa, incluindo o treino básico de militares. No nosso quartel temos também instalada a Banda Sinfónica do Exército e o seu Centro de Psicologia Aplicada. Contudo, a nossa atuação transcende os campos tradicionais da defesa, evidenciando-se através de ações solidárias e de apoio à comunidade, especialmente em momentos de crise, como foi o caso da pandemia de Covid-19. Durante este período o regimento tornou-se uma força de auxílio vital. Com o encerramento de várias Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e organizações não-governamentais, uma parte significativa da população vulnerável, incluindo os sem-abrigo, encontrava-se desprovida de apoio social. O regimento foi uma das unidades mobilizadas para suprir esta lacuna, distribuindo diariamente alimentos a essas pessoas. Além disso, colaborámos ativamente na plataforma Trace Covid-19, operando centrais telefónicas para entrar em contato com pessoas infetadas e identificar cadeias de transmissão do vírus. Montámos vários centros de vacinação e as nossas equipas de descontaminação dedicaram-se à desinfeção de escolas, especialmente no concelho de Sintra.
Neste contexto de apoio à comunidade, mantemos um protocolo anual com a Câmara Municipal de Sintra (CMS) e com a Parques de Sintra – Monte da Lua. Comprometemo-nos, entre os meses de maio a outubro, a realizar patrulhas noturnas na Serra de Sintra, vigilância essa que desempenha um papel crucial na prevenção de incêndios florestais.
FORMAÇÃO
CL – Vocês também apostam bastante na formação…
JCM – Sim, a formação inicial é a recruta sendo que existem três centros para este efeito: em Chaves, Abrantes e Beja. Aqui, os jovens recrutas embarcam numa jornada de aprendizagem que se estende por três meses, compreendendo uma formação básica abrangente, seguida por uma especialização nas suas áreas de interesse. É inegável que algumas áreas de especialização apresentam uma notável correspondência com o âmbito civil, como é o caso da condução, da restauração, do secretariado, da mecânica, entre outras. O nosso objetivo primordial é dotá-los das habilidades e competências necessárias para ingressarem com sucesso no mercado de trabalho após o serviço militar.
No que concerne aos regimes de prestação de serviço militar, oferecemos três opções distintas: voluntariado (1 ano), contrato (6 anos) e contrato especial. Este último regime foi recentemente introduzido, oferecendo aos militares a oportunidade de prestar serviço por um período de tempo limitado, com uma duração legal mínima de 4 anos e máxima de 14 anos. No regime de contrato, existem alguns incentivos para encorajar os jovens a prestarem serviço. Destacam-se vantagens como vagas reservadas no acesso ao ensino superior, o estatuto de trabalhador-estudante, formação certificada, entre outros. No novo regime de contrato especial, que se estende por um período mais longo, os jovens passam por um extenso período de formação, com quase um ano de duração, certificado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. Este certificado confere o nível 5 aos sargentos e nível 4 às praças. Ademais, esses jovens também desfrutam de vantagens adicionais, como o acesso privilegiado aos quadros da administração pública como funcionários civis.
CL – Quantas pessoas compõe este o RAAA1 e como se apela os jovens a seguirem esta área?
JCM – O atual contingente de operacionais do regimento ronda as 180 pessoas, um número que, embora respeitável, está aquém do que aspirávamos alcançar. É importante fazermos aqui uma reflexão: no Dia da Defesa Nacional recebemos no nosso polo, cerca de 10 mil jovens que exibem um notável potencial e interesse em servir, o que sugere uma predisposição intrínseca para o serviço militar. No entanto, muitos deles acabam por não seguir esta via. Ao refletirmos sobre os meios necessários para atrair mais pessoas para esta área, deparamo-nos com a crucial questão do regime de incentivos.
Atualmente, o sistema de recrutamento é fundamentado no voluntariado e em contratos, uma vez que o serviço militar obrigatório foi abolido em 2004. Porém, ao longo dos anos, o regime de incentivos tem sido progressivamente reduzido, impactando negativamente a capacidade de atrair e reter talentos. Esta é uma decisão de ordem política que transcende o domínio do comando do regimento. A revisão do regime de incentivos é imperativa para assegurar que chamar jovens para a área militar e para os manter motivados. A atratividade é essencial para sustentar um contingente qualificado e comprometido.
É notório que muitos dos que terminam seus contratos lamentam deixar a instituição, pois encontram identificação e satisfação no trabalho desempenhado. No entanto, fatores externos acabam por influenciar as suas decisões. Portanto, torna-se fundamental criar um ambiente que não apenas atraia, mas também que mantenha esses profissionais comprometidos com a missão e os valores da instituição.
CL – Qual a vossa relação com a comunidade em que se inserem?
JCM – O nosso relacionamento com as comunidades locais, em particular com a União de Freguesias de Queluz e Belas e a União de Freguesias de Massamá e Monte Abrão, é caracterizado por uma estreita colaboração e um profundo compromisso para com o bem-estar da população
No caso desta última, prestamos apoio social: diariamente, depois do almoço e do jantar, a Junta vem aqui recolher as sobras de comida que distribuem por uma série de famílias que estão devidamente referenciadas. Também temos um protocolo com a Refood à qual também destinamos sobras das referidas refeições.
Por sua vez, a União de Freguesias de Queluz e Belas conta com a nossa colaboração para diversas atividades solidárias. É disto exemplo, concerto solidário que organizamos anualmente em parceria com a banda sinfónica do Exército. Para ter acesso ao concerto, os participantes são incentivados a trazer géneros alimentícios diversos, que são posteriormente distribuídos pela União de Freguesias, às famílias carenciadas.
Além disto, desde 2017 acolhemos o Belas Rugby Clube nas nossas instalações, tendo concluído as obras de requalificação do campo em 2019. Diariamente, dezenas de jovens frequentam o espaço para treinos, e aos fins de semana recebemos centenas de espectadores para assistir aos jogos, fortalecendo assim a atividade desportiva na região.
É de mencionar que possuirmos uma extensa mata adjacente ao nosso quartel, conhecida como Quinta Nova de Queluz, que abrimos diariamente à população. Este espaço, com aproximadamente 20 hectares, é frequentado por inúmeras pessoas que ali encontram um refúgio para passear os seus cães, praticar exercício físico ou simplesmente desfrutar da natureza. Contamos com o apoio da autarquia para a limpeza e manutenção deste espaço.
CL – O dia 1 de outubro é designado como o Dia da Unidade. Como assinalam essa data?
JCM – A celebração do Dia da Unidade segue uma tradição estabelecida no Regulamento Geral de Serviço das Unidades do Exército. Este evento não apenas homenageia os que sacrificaram as suas vidas em serviço, mas também oferece uma oportunidade para reunir o regimento numa formatura solene. Durante esse momento, é feita uma reverência à história da unidade, refletindo sobre as conquistas do ano anterior e estabelecendo metas para o próximo ciclo.
A presença de convidados especiais, incluindo antigos comandantes e veteranos que serviram com distinção, adiciona uma camada de significado à ocasião, conectando o presente com o passado glorioso da unidade. Além disso, é comum fazer-se uma demonstração de capacidades, destacando as habilidades e profissionalismo dos membros do RAAA1.
Os dias da unidade não são apenas uma formalidade, mas sim um momento para reforçar os laços de camaradagem e honrar as tradições que definem a identidade da unidade. É uma oportunidade para refletir sobre o legado deixado pelos que vieram antes de nós e renovar o compromisso com os valores que guiam nosso serviço. Assim, cada celebração do Dia da Unidade torna-se um testemunho eloquente da resiliência, coragem e dedicação dos que servem nesta nobre instituição.
CL – Um momento marcante na vossa história foi a morte de 25 militares que perderam a vida no grande incêndio da Serra de Sintra em 1966. Também assinalam este momento?
JCM – A lembrança da tragédia ocorrida no grande incêndio de Sintra, onde perdemos 25 militares, permanece uma parte indelével da nossa história. Anualmente, renovamos o nosso compromisso de honrar a sua memória através de uma cerimónia realizada no local da tragédia, Pico do Monge.
Na nossa capela, existe também um monumento erguido em sua memória que serve como um testemunho permanente da sua bravura e sacrifício.
Atualmente já não exercemos essa função de combate aos incêndios, mas é de ressalvar que, para além do mencionado protocolo com a CMS e os Parques de Sintra – Montes da Lua, o Exército desenvolve o Plano de Apoio Militar de Emergência no âmbito do qual a nossa unidade mantém um contingente preparado para responder com prontidão em situações de rescaldo e vigilância pós-incêndio, além do reforço das patrulhas de vigilância de dissuasão. O nosso papel é crucial na prevenção de reacendimentos e na manutenção da segurança, intervindo para evitar que situações já controladas voltem a representar uma ameaça. É fundamental a formação dos operacionais de modo a assegurar a integração eficaz com a estrutura da proteção civil. Ao estarmos prontos para agir em momentos de crise, reforçamos o vínculo de confiança entre as Forças Armadas e a sociedade.
NOTA: Artigo escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico