É difícil não dar atenção às enérgicas e sonoras actuações do Grupo de Bombos das Mercês. Mal o elemento que marca o compasso, o ‘puxa-caixa’ ou ‘bombo-mor’, dá entrada à bateria, o som seco, troante, provocado pelas batidas das macetas nas peles dos bombos não deixa ninguém indiferente. Uns porque entram rapidamente no ritmo da festa. Outros porque saltam nas cadeiras arrancados subitamente ao silêncio e/ou pacatez do local onde foram surpreendidos. E não é apenas nos espectáculos. Nos ensaios acontece a mesma coisa. Energia é coisa que nunca falta.
“Podemos ser a associação mais pequenina que existe no concelho de Sintra, mas também somos aquela que se faz ouvir melhor, a que faz mais barulho. Animação é connosco. Os Bombos da Festa estão bem vivos nas Mercês”, garante Rogério Ferrolho, presidente da Direcção do Grupo de Bombos das Mercês, um dos responsáveis pela resiliência e trabalho desenvolvido por este grupo de percussão tradicional para manter vivo e operante o colectivo criado, através de escritura pública, em 7 de Fevereiro de 2000, com a denominação de Associação do Grupo de Bombos das Mercês.
Não duvidamos das palavras proferidas orgulhosamente pelo nosso entrevistado, um dos elementos que, juntamente com um punhado de outros ‘teimosos’ e apaixonados por este projecto, continua a apostar na sua valorização no difícil caminho de manter acesa a sonoridade de um instrumento tradicional muito popular, sobretudo no Norte de Portugal, onde é, literalmente, o Bombo da Festa, responsável por marcar o compasso em romarias, festas religiosas, feiras, arruadas, desfiles, fanfarras, marchas, aniversários, inaugurações e outros eventos.
Considerados Grupos de Música Popular, os colectivos de tocadores de bombo, também conhecidos em algumas regiões por ‘Zés-Pereira’, têm sido responsáveis por preservar a tradição e a memória dos agrupamentos de percussão tradicional, mas não só. Seja em feiras medievais, de recriação histórica, em peditórios, para ajudar a atingir as mais diversas causas, ou até mesmo integrados em iniciativas destinadas a promover as mais variadas campanhas políticas antes de actos eleitorais, os tocadores de bombo chamam a atenção e não deixam ninguém indiferente à sua passagem.
Pela sua vocação social e cultural, pela forma como têm mantido viva uma tradição que resiste e não quer cair no esquecimento de um passado tantas vezes descolorado pela passagem do tempo, ou simplesmente ignorado, os grupos de bombos mereciam, também eles, chamar sobre si mais frequentemente a atenção daqueles que se lembram da sua sonoridade retumbante apenas em momentos de necessidade. Sobre estas e outras questões, em torno de bombos, ‘bombistas’ e ‘bombeiros’, estivemos à conversa com Rogério Ferrolho e António Isidro, outro fiel percussionista do Grupo de Bombos das Mercês.
“JÁ NOS CHAMARAM ‘BOMBISTAS’ E ‘BOMBEIROS’”
Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Ficam preocupados quando são chamados de ‘bombistas’? Já aconteceu?
Rogério Ferrolho (RF) – Sim, já nos chamaram ‘bombistas’ e também já nos chamaram ‘bombeiros’. Acontece. Não nos preocupa. Somos percussionistas. Damos nas vistas.
CL – E quando fazem actuações assim de manhã cedo, há quem venha à janela protestar?
RF – Já ocorreu virem à janela e gritarem ‘pouco barulho’. Há pouco tempo, fomos fazer a inauguração de um novo supermercado em Fitares e houve pessoas que vieram à janela queixar-se. Mas a maioria gosta das nossas actuações.
CL – O que levou à criação deste Grupo de Bombos?
RF – A razão da criação deste Grupo, porque não havia a tradição dos bombos no concelho de Sintra, foi um senhor que era de Baião: Trajano Nogueira, fundador e sócio N.º 1 da nossa associação, infelizmente já falecido. Foi ele que comprou os bombos, de acordo com a direcção da organização da Feira das Mercês, para abrilhantar esta feira. A intenção foi essa. Foi no início dos anos 1990. Mais tarde, estes elementos zangaram-se e os bombos lá ficaram. Foi então que o Sr. Trajano trouxe lá no Norte, de São Tiago de Valadares (concelho de Baião), mais quatro bombos e arranjou cá malta ao jeito dele para fundar o Grupo de Bombos das Mercês.
Anteriormente, o grupo de bombos pertencia à já extinta Associação de Solidariedade Social das Mercês. Na base da criação da Associação do Grupo de Bombos das Mercês, em 7 de Fevereiro de 2000, estiveram nove pessoas: Trajano Nogueira, António Pinto, Valdemar Mendes, Damião Rodrigues, José Nogueira, Hermenegildo Sequeira, Rogério Ferrolho, Arnaldo Ruivinho e Vitoriano Ramos. Hoje em dia, o único que ainda está vivo sou eu.
CL – Quantos elementos tem o vosso Grupo actualmente?
RF – Temos 12 elementos, mas nem sempre vêm todos. Apesar de a maior parte já estar reformada, alguns ainda trabalham.
CL – Que idades têm?
RF – Temos pessoas entre os 40 e os 82 anos, oriundas das mais variadas profissões, desde polícias e GNRs a funcionários dos CTT, passando por motoristas, domésticas e auxiliares de educação.
CL – Também existem senhoras no Grupo?
RF – Para já, temos três senhoras, mas há já uma outra, que também quer vir.
“A MALTA NOVA NÃO APARECE”
CL – Então, e os mais jovens, não querem entrar para o grupo?
RF – A malta nova não aparece, não quer isto. E depois, se vem algum jovem, também não tem mais ninguém da sua idade para interagir. Mas, mesmo quando nos deslocamos para outros sítios, também não se vêem muitos jovens. Às vezes os pais trazem os filhos, mas não é fácil. São jovens, vêm aqui e depois não têm outros jovens para comunicar, ficam a olhar para os mais velhos e acabam por cansar-se e deixar de vir.
CL – Quantos sócios tem a Associação?
RF – Temos à volta de 150 sócios, mas muitos não pagam quotas. Inscreveram-se e nunca mais cá apareceram. Aqueles que vêm é mais pelo convívio. Nós até criámos um Dia Especial do Sócio, que é no São Martinho, a 11 de Novembro. Assamos umas castanhas e fazemos um churrasco, para juntar aqui os sócios na nossa sede. Apesar das dificuldades, continuamos a promover esta iniciativa e vêm cá as nossas esposas, as nossas famílias e os nossos amigos. Fazemos aí um convívio engraçado, muito bonito.
CL – Como é que se fazem transportar para os eventos em que participam?
RF – Temos uma carrinha velhinha, mas rija, com capacidade para transportar nove pessoas e com um espaço atrás para levar os instrumentos. Se formos mais, já tem de ir um carro ou mais a apoiar.
CL – O que é preciso fazer para entrar para o vosso Grupo?
RF – É só vir ter connosco, fazer-se sócio, ter interesse em entrar no Grupo e comprometer-se a participar nos ensaios, realizados aqui na nossa sede (Rua Vasco Santana, 10 / Mercês / Rio de Mouro).
CL – Quando é que têm lugar os ensaios?
RF – São realizados todos os sábados, mais ou menos durante duas horas, entre as 15h00 e as 17h00. Às vezes, prolongam-se durante mais um bocadinho.
CL – Quanto tempo é preciso para aprender a tocar Bombo?
RF – Isso é rápido, é no mesmo dia. Basta a pessoa ter atenção e saber ouvir, acompanhar o compasso e manter o ritmo. Vai lá com facilidade. Não é como outro instrumento qualquer, que tem uma escala e tem de se aprender, o que demora algum tempo. O Bombo não tem escala.
CL – Além do Grupo de Bombos, têm mais algum projecto?
RF – Temos o Grupo de Bombos, para fazer arruadas, para chamar a atenção do público, já fizemos muita coisa nas campanhas políticas, fomos para muitos lados, participamos em inaugurações da Câmara e outras. Actuamos em espectáculos, festas, feiras e outros eventos. E depois temos o Grupo de Música Tradicional Portuguesa ‘Os Bombos’, que já tem outros instrumentos, como, por exemplo, o reco-reco, o ‘bombito’, o adufe, a concertina, os cavaquinhos, a pandeireta, os ferrinhos… Também cantamos músicas tradicionais. Com este grupo interpretamos imensos temas, mais perto do folclore. Entre os que fazem mais sucesso, destacam-se ‘Rio Lima’, ‘Mulher Gorda’, ‘Mulher Chorona’, ‘Aldeia da Luz’ e ‘Sou Português Emigrante’. Trata-se de um grupo que não é só instrumental, ao contrário do que acontece com o Grupo de Bombos.
CL – Em que campanhas políticas já participaram?
RF – Chegámos a andar dois dias seguidos com Cavaco Silva. Mas também acompanhámos arruadas com o Jerónimo de Sousa e o Mário Soares.
CL – Quem é o ensaiador dos vossos grupos?
RF – É o Sr. Victor Teixeira Dias. Ele é o elemento fundamental deste grupo. Está reformado da GNR, fez parte de outros grupos musicais e tem grande experiência neste domínio. Além de ensaiador, é também ele o mecânico dos bombos.
CL – Como decorrem os ensaios dos bombos aqui na vossa sede?
RF – Duram cerca de 10/15 minutos e depois paramos. Aparecem logo dois ou três vizinhos a protestar. A maioria gosta. Ao princípio, quando nos instalámos aqui, a vizinhança chegou a ligar para a Polícia a queixar-se do barulho. Os agentes passavam por aí e não achavam que estivéssemos a fazer nada de mal. Era durante o dia, a horas perfeitamente normais, estávamos a ensaiar, depois acabávamos, não estávamos a incomodar ninguém. Com o passar do tempo, as pessoas foram-se adaptando e passaram a aceitar melhor a nossa presença e a compreender a necessidade de fazermos os ensaios. Hoje em dia, a convivência já é muito melhor, diria mesmo normal.
CL – O espaço ocupado pela vossa sede é bastante reduzido. Alguma vez pensaram em mudar-se para outro local?
RF – Já estivemos para pedir isso à Câmara e à Junta. Não estão muito sensibilizados para disponibilizar um espaço maior. E nós também não queremos sair daqui, porque somos o Grupo de Bombos… das Mercês.
“TOCAR BOMBO AJUDA A REDUZIR O STRESSE”
CL – Com que apoios conta o Grupo?
RF – Somos apoiados pela Câmara Municipal de Sintra, através do Programa de Apoio ao Movimento Associativo Cultural do Concelho de Sintra (PAMACS), e pela Junta de Freguesia de Rio de Mouro, que dá para pagar a renda da sede. Temos um protocolo com a Câmara e com a Junta em troca de actuações. É isso que nós defendemos, que consideramos válido: recebemos apoios em troca de serviços.
Depois, participamos no Cantar das Janeiras e nas marchas dos Santos Populares e arranjamos umas moedinhas, para nos ajudar a pagar as restantes despesas, como o gasóleo para as deslocações, a reparação dos bombos, as reparações da carrinha, água, luz, contabilista… E também recebemos por algumas actuações que fazemos, o que nos ajuda a suportar outros gastos decorrentes da nossa actividade. Ir tocar a um lar de idosos, a um centro de dia, a uma escola ou a uma creche é uma coisa, enquanto ir tocar num evento de uma empresa é outra. É com este dinheiro que vamos sobrevivendo. Em termos de apoios, não temos mais nada, nem patrocínios.
CL – Qual foi a deslocação mais longe que fizeram?
RF – Foi a Baião, também já nos deslocámos à Covilhã, ao Fundão, a Arganil e ao Alentejo. Entre outros eventos, actuámos no Festival Internacional de Percussão ‘Portugal Toca a Rufar’, que decorreu em 2010 no Seixal; participámos no festival organizado pelo INATEL ‘1000 Músicos em Movimento’, realizado no Parque das Nações, em Lisboa; e marcámos presença no Festival de Grupos de Bombos, em Alcaide.
CL – Dizem que tocar bombo faz bem à saúde, que ajuda a reduzir o stresse? Isso é verdade?
RF – Sim, é verdade. Eu falo por mim. Tinha um problema na vida e isso fez-me vir para este grupo. Andava com muito stresse. Quem está saturado de uma situação qualquer e precisa de descarregar, encontra aqui o meio certo para o fazer. É bater no bombo com energia, que ele não se queixa. Além de que bater no bombo também não o estraga, desde que se saiba bater como deve ser. E isto desanuvia a pessoa. Podem pensar que eu estou a brincar, mas não estou, é a sério. Isso foi uma das coisas que me fez agarrar a isto e eu já aqui estou há 23 anos.
CL – Quem é que criou os vossos fardamentos?
RF – Fui eu. Temos um fardamento regulamentado para todas as actuações, que é composto por boina preta do tipo militar, inserida sob proposta de um amigo que já cá não está, camisa branca com manga comprida, gravata amarela e colete, calça/saia e sapato pretos. Este fardamento é comum aos dois grupos.
CL – Como é que decorre a actuação dos bombos?
RF – Há uma concertina que toca uma música e nós acompanhamos. O ritmo das pancadas no bombo vai variando consoante os temas interpretados.
CL – Costumam executar algum tipo de coreografia enquanto tocam?
RF – Se tivéssemos gente nova, trabalhávamos uma, mas assim não. Alguns elementos do grupo até gostavam, para não ser só andar em frente a tocar, mas nunca chegámos a avançar com isso.
CL – Como enfrentaram os anos da pandemia COVID-19? Continuaram a receber os apoios da Câmara e da Junta?
RF – Sim, continuámos, tanto a Câmara como a Junta mantiveram os apoios, sabiam que nós mantínhamos as despesas com a sede… Com a condição de os serviços que não se fizeram nesses anos fossem feitos mais tarde.
CL – Um projecto por realizar? Um desejo?
RF – Gostávamos de poder organizar um encontro de Grupos de Bombos para assinalar o nosso 25.º aniversário, aqui nas Mercês. Para isso, temos de conseguir apoio para podermos disponibilizar a alimentação aos elementos dos grupos visitantes. Também gostávamos de poder organizar, periodicamente, encontros de concertinas, eventualmente nos dias do nosso aniversário. Mas, para isso ser possível, é necessário reunir as verbas necessárias, o que nunca é fácil.
CL – Uma história engraçada que possam partilhar com os nossos leitores?
RF – Uma vez, estávamos a tocar no encerramento de uma campanha de Cavaco Silva, no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, quando um dos elementos do grupo, devido à energia posta na actuação, rebentou com o cinto das calças, que lhe caíram aos pés. Esse azar do nosso colega pôs toda a gente a rir. Foi um episódio que acabou por ficar na memória de todos.
MEDALHAS DE MÉRITO E TROFÉUS
Desde a sua criação, em 2000, o Grupo de Bombos das Mercês já recebeu centenas de troféus de participação nos mais variados eventos, entre galhardetes, medalhas, diplomas, certificados e outros, bem patentes nas vitrinas de exposição que tem na sua sede.
Destaca-se ainda nos 23 anos de história da Associação o facto de ter sido agraciada com Medalhas de Mérito Cultural pela Junta de Freguesia de Algueirão Mem-Martins, em Fevereiro de 2010, e pela Junta de Freguesia de Rio de Mouro, em Junho do ano seguinte.
LETRA DA MARCHA DOS BOMBOS DAS MERCÊS
Nas actuações que realiza, o Grupo de Bombos das Mercês costuma apresentar-se com a seguinte marcha, cuja letra é da autoria de Rogério Ferrolho.
Somos os Bombos
Os Bombos das Mercês
Bombos e caixas
Que tocamos para vocês
De grupo fraco
Autoridade forte
Tocamos os Bombos
Que vieram do Norte
Tocamos tocamos
Parados e a andar
Caixas e Bombos
Para vos alegrar
Tocamos os Bombos
Com muita emoção
Para enaltecer
Esta Associação