João Cabral da Silva: “Sinto saudades da população de Cascais”

No número 81 da Rua Regimento 19 de Infantaria, no Largo Luís de Camões, em pleno centro histórico de Cascais, existe um edifício estreito, que se destaca dos restantes pela sua peculiaridade. O imóvel, com três pisos, serve de sede à imobiliária Agência Vitória, com 66 anos de existência, fundada em 1956 por João Moreira Cabral da Silva. Este é um dos raros estabelecimentos sobreviventes às alterações operadas na baixa de Cascais, resultantes da crescente procura de espaços por parte da indústria do Turismo. Juntamente com a Drogaria Costa, instalada há 132 anos no número 4 da vizinha rua Visconde da Luz, este estabelecimento mantém ainda viva a memória do passado de Cascais. Resta saber até quando vai durar esta resiliência numa área dominada por um elevado número de restaurantes e bares, muito procurados pelos turistas que visitam a vila.

Apesar do aumento do volume de vendas registado nos últimos anos no sector imobiliário, dominado por uma forte procura protagonizada por clientes estrangeiros que têm escolhido Portugal para viver e trabalhar, o que tem pressionado os preços em alta juntamente com alguma especulação verificada, nem todos vêem com bons olhos esta tendência do mercado, nomeadamente aqueles que defendem a preservação da identidade da vila e estão preocupados com a perda de algumas das suas características. “É importante promover e desenvolver o sector turístico, mas se acabarmos com aquilo que nos torna únicos, com a nossa identidade, o que vamos ter para oferecer aos turistas no futuro?”, questionam alguns cascalenses. João Cabral da Silva partilha desta preocupação e recorda com tristeza memórias de Cascais que parecem estar cada vez mais ameaçadas.

À frente da gerência da J. M. Cabral da Silva, Sociedade de Mediação Imobiliária Lda, desde que esta abriu portas, está um tenaz e orgulhoso empresário quase a completar 88 anos de vida, que falou ao jornal ‘O Correio da Linha’ sobre a história da empresa imobiliária que criou bem no coração de Cascais, uma vila que diz amar, onde nasceu e foi criado, e que não trocaria por qualquer outro local para viver. “Adoro o que faço. É aqui que me sinto bem, a fazer o que gosto”, garante o agente imobiliário, que vive numa casa do início do século passado, ali bem próximo, na rua Direita, outra das artérias mais populares da vila. Ao falar dos serviços que fornece aos clientes, João Cabral da Silva recorda que recusou seguir uma carreira militar, para poder fazer o que mais gosta.

Foto: Paulo Rodrigues

“CHEGUEI A RECEBER 500 CASAS PARA ALUGAR NO VERÃO”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Fale-nos deste prédio onde está instalada a sua agência. Qual é a sua origem?

João Cabral da Silva (JCS) – As paredes laterais são do século XVII. Quando o meu pai adquiriu este edifício, por volta de 1925/1930, funcionou aqui, através de aluguer e durante bastante tempo, uma sucursal da Pastelaria Garrett do Estoril. Mais tarde, tivemos uma ourivesaria no piso térreo e a agência imobiliária no primeiro andar.

CL – E desistiu de uma carreira militar para poder optar pela profissão de agente imobiliário?

JCS – Eu estive na Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Torres Novas, depois de ter feito o Liceu no colégio João de Deus, no Monte Estoril. Por acaso, o professor de Francês, Português, Latim e Grego era o pai da minha mulher. Tirei o curso na EPC, até queriam que eu lá ficasse, mas eu preferi vir para o pé do meu pai. Iniciei a minha carreira com 21 anos. Como nessa altura havia muitos ingleses e francesas em Cascais, eu fui estudar línguas em dois colégios de Lisboa para aperfeiçoar o domínio desses idiomas.

CL – O que recorda mais desses tempos iniciais?

JCS – Tive aqui clientes muito bons. Tive 14 empregadas, uma delas era inglesa e outra era francesa, eram elas que tratavam da correspondência nessas duas línguas. Falava-se aqui mais em estrangeiro do que em Português, porque trabalhava mais com clientes estrangeiros. Foi difícil os portugueses aceitarem recorrer a uma agência para arrendarem as suas casas.

CL – Qual era o volume de negócio nessa altura?

JCS – Eu cheguei a receber 500 casas para alugar no Verão. E todos os meses vendíamos casas. Tínhamos muito movimento. Os ingleses não arrendavam, preferiam comprar. Na década de 1950, havia uma lei que obrigava que eles tinham que deixar 400 contos em depósito e tinham que demonstrar que os rendimentos que usufruíam no seu país comportavam as despesas feitas em Portugal. De outra forma, não podiam ficar a viver no País. Fiz muitos amigos estrangeiros, conheci muita gente de origem monárquica, por exemplo da Bulgária, Roménia, Itália e de outros países, que fugiu do Comunismo. Toda essa gente tinha um comportamento totalmente diferente dos turistas de agora. Durante a guerra civil de Espanha, aconteceu a mesma coisa, vieram muitos espanhóis para cá, que procuravam os nossos serviços. O conde de Barcelona vivia no Estoril. Essas pessoas faziam aquilo que os portugueses muitas vezes não fazem, que é manter a traça dos edifícios que compravam. Recuperaram-se muitas casas na Malveira da Serra.

CL – Quais foram os clientes mais conhecidos que teve?

JCS – Tive muitos clientes conhecidos: a família Avilez, Maria de Mello Breyner, Cecília Supico Pinto, Ricardo Espírito Santo e vários outros. Tive também como cliente um senhor norueguês que foi director da companhia de aviação KLM, que era meu amigo e chegou mesmo a ir ao meu casamento. Comprou uma propriedade na Malveira da Serra que tinha uma pequena casa antiga, que recuperou e manteve, sem alterar a estrutura, para receber ali as visitas.

CL – Actualmente, há mais estrangeiros a viver aqui em Cascais?

JCS – Hoje, é completamente diferente, os estrangeiros que vêm para cá é para trabalhar. Antigamente, não vinham com esse propósito, vinham para investir. Actualmente, também chegam de outros países, por exemplo do continente asiático. Também recorrem ao meu estabelecimento, mas é para alugar. Recebo muitas rendas dessas pessoas. Vêm à procura de trabalho, de melhores condições de vida, e vivem a monte, porque as rendas praticadas são demasiado altas.

CL – Existem muitas casas para arrendar na região de Cascais?

JCS – Neste momento, não há casas para arrendar, porque as que havia transformaram-nas em habitações de aluguer de curta duração. As restantes são habitadas por imigrantes, que chegam a viver aos 9, 10 ou 15 dentro da mesma casa. Não é como aconteceu na Mouraria, onde ocorreu aquele incêndio terrível, esse tipo de pressão aqui não há, mas existem casas que são habitadas por mais pessoas do que seria de supor. Sei de uma casa que se arrendou por 950 euros/mês. O ordenado médio de um português não comporta poder arrendar uma casa por este valor, mas os imigrantes alugam, porque depois vão para lá viver 9 ou 10 pessoas. É assim que conseguem. E isso veio desregular o mercado totalmente.

CL – Qual é o valor médio da renda para um T2 em Cascais?

JCS – Por um T2 estão a pedir, às vezes, mil euros. É um exagero.

CL – O que pensa do pacote de medidas anunciado pelo Governo para combater a crise na Habitação?

JCS – É o Estado a imiscuir-se na administração de bens particulares. Pessoalmente, não posso concordar com isso de maneira nenhuma e estou convencido de que não vai em frente. Isso do Estado alugar uma casa por estar devoluta e depois o próprio Estado arrendar a outra pessoa não cabe na cabeça de ninguém. O proprietário é obrigado a arrendar? Pode não querer fazê-lo, pode querer ter uma casa fechada, tem esse direito.

Os governos deviam indagar junto das agências imobiliárias, junto das casas que tratam destes assuntos, sobre o que é que acham deste tipo de coisas, mas não, criam-se leis sem perguntar nada. Devia de haver uma renda mínima e depois a diferença para o valor cobrado, quem provasse que não podia pagar, era ajudado pelo Estado.

CL – Na sua opinião, o que mais falta fazer para promover o mercado Imobiliário em Portugal?

JCS – Eu vivo numa casa na rua Direita que era dos meus pais, um imóvel construído em 1904. Eu tenho o projecto da casa, porque a partir de 1900 foi obrigatório em Cascais construir-se com projecto aprovado pela Câmara. Isto ainda no tempo do rei D. Carlos. Antes disso, cada qual construía conforme lhe apetecia. Posso dizer que esse projecto entrou num dia e foi passada a licença para construção logo no dia seguinte. Hoje em dia, para fazer qualquer coisa, leva imenso tempo para darem andamento aos processos. Esse tipo de procedimento devia ser muito mais rápido.

Foto: Paulo Rodrigues

“EU AMO A MINHA TERRA: CASCAIS”

CL – Sente saudades de Cascais de antigamente?

JCS – Eu amo a minha terra. Sinto muitas saudades da população de Cascais, que era totalmente diferente. Hoje em dia, eu passo pelas pessoas e não as conheço. Eu conhecia toda a gente! Isso tem mudado bastante, sobretudo nas últimas décadas. Há alturas em que não se ouve uma única palavra em Português, parece que não estamos no nosso País.

CL – Nasceu, cresceu e tem vivido sempre em Cascais. O que mais aprecia na vila?

JCS – O que mais gosto é da própria vila de Cascais. Peço a Deus para que nunca mudem para cidade, que a vila tem muito mais categoria. Que se conserve uma vila, que afinal é uma vila de fidalgos. Pescadores, sem dúvida, mas fidalgos também, porque veio tudo atrás do rei Dom Carlos. E como veio tudo atrás do rei, há por aí palácios de fidalgos por todo o lado, da duquesa de Palmela, da marquesa de Tancos e outros.

CL – Ainda se lembra do primeiro negócio que fez?

JCS – Sim, lembro. Foi pouco depois de ter começado a trabalhar. Vendi o prédio onde está instalada a Farmácia Marginal.

CL – Havia muitas agências imobiliárias na região de Cascais quando iniciou a sua actividade?

JCS – Não, só havia três. Havia esta, a Oásis nas arcadas do Estoril e a Cicerone ao pé do Hotel Paris.

CL – Quais as zonas mais apreciadas pelos estrangeiros para comprar propriedades?

JCS – Havia muitos estrangeiros que preferiam a Malveira da Serra, muitos mesmo. Há também a Charneca e Murches.

CL – Como vê as alterações que têm vindo a ser operadas em Cascais, nomeadamente no centro histórico da vila?

JCS – Há coisas com as quais concordo e outras com as quais não concordo. A zona histórica devia manter-se exactamente como era. Sei de casas que são requalificadas e que ficam como eram, impecáveis. Mas há casos em que isso não acontece. Depende de quem compra e dos conhecimentos que tem. Ainda há pessoas que se preocupam e não deixam fazer um certo número de coisas, mas há outras que não têm essa preocupação. Devia existir uma lei que obrigasse a preservar a traça original das casas.

Onde está a farmácia Cordeiro foi um crime que se praticou. Ali era o Palácio do Dias da Ponte. Na altura, existia ali a ribeira das Vinhas, que vinha da serra de Sintra, e havia uma ponte na rua Direita para cá. Por isso é que era o Dias da Ponte, que tinha uma casa apalaçada, solarenga, muito interessante, bonita, cheia de azulejos maravilhosos. Aquilo foi deixado às criadas, que acabaram por vender a propriedade. Mais tarde, foi construída aquela casa da farmácia, que é feia, não me diz nada.

No caso do Estoril-Sol, eu e o meu pai estivemos na inauguração do hotel, que tinha uma vista maravilhosa, 404 quartos, um restaurante espectacular… mas outras coisas se movimentaram, acharam que o edifício estragava a paisagem de Cascais. Pois eu não sei o que é que estragará mais a paisagem, se era o hotel ou se são aqueles monstros que lá puseram, que são horríveis. O Hotel Estoril-Sol era um mundo lá dentro. A decoração no interior, da autoria de José Adelino Espinho (1915-1973), era lindíssima. Além disso, os estrangeiros que ficavam alojados no hotel davam movimento e traziam negócio a Cascais.

Cascais 1890. Ponte em pedra sobre a Ribeira das Vinhas, a ligar a Rua Direita ao Largo Camões

HISTÓRIAS DE TESOUROS ENCONTRADOS POR ACASO

CL – Relate-nos um caso curioso sobre uma propriedade que tenha vendido?

JCS – Eu conheci um cidadão nórdico que comprou uma propriedade onde existiam ruínas romanas. Durante as obras que fizeram para construir a casa encontraram muitas moedas dessa época. Tive conhecimento de outro caso em que foi descoberto enterrado no solo um tesouro constituído por pucarinhos de barro que tinham lá dentro moedas romanas com a figura de Júlio César (100 aC-44 aC). Também aqui perto, numa aldeia nas fraldas da serra de Sintra, vendi uma casa antiga, do século XVII, a um cliente que, ao fazer obras no telhado, encontrou uma serapilheira com uma série de moedas de D. João V em prata. Nessa mesma propriedade, com 8.000 metros quadrados, foi encontrada também por acaso uma outra serapilheira igualmente com moedas antigas, que estava dissimulada num muro de pedra deitado abaixo por acidente por uma retroescavadora.

CL – Ao longo da sua vida, quais foram as principais mudanças a que assistiu aqui na rua? 

JCS – Ocorreram no Largo Luís de Camões, que não era assim. Onde está a estátua do poeta existia um edifício grande com várias lojas, entre as quais uma sapataria, uma alfaiataria, uma loja de fazendas e a Sociedade Propaganda de Cascais. Tudo isso desapareceu. Entretanto, como não podiam, felizmente, deitar abaixo as fachadas dos edifícios, mantiveram-nas, até porque os estrangeiros não vêm ver os arranha-céus, vêm é ver os edifícios típicos do País. É isso que eles vêm cá fazer, admirar aquilo que nos diferencia.

CL – Como vê a situação de imóveis, alguns dos quais classificados, que se encontram degradados, ou mesmo em estado de ruína?

JCS – Existe aqui perto o Solar Dom Carlos, onde morou o rei, que tem uma capela lindíssima do século XVIII, em talha dourada. Foi ali instalada uma residencial, que acabou por fechar. Só espero que este imóvel não seja substituído por outra coisa qualquer e que se destrua o património ali existente. Há vários outros exemplos de imóveis importantes que importa preservar. Se não houver dentro da Câmara, seja ela qual for, pessoas que realmente amem o património antigo e tenham a visão de o preservar, tudo isso se perde. Hoje, aposta-se mais nas coisas modernas e esquece-se o antigo, mas nós temos de ter passado também. Quem esquece o seu passado dificilmente consegue ter futuro.

CL – O que o levou a prolongar a sua actividade profissional estando já reformado há algum tempo?

JCS – Hoje em dia, eu já não vivo da agência. Contudo, sou da opinião de que as máquinas quando param enferrujam. Portanto, eu não quero parar. Embora não tenha as virtudes do Papa João Paulo II, queria seguir-lhe o exemplo. Ele chegou até ao fim, morreu na cadeira dele, no seu posto. Sei que há um certo número de coisas que já não posso fazer, mas há outras que ainda posso, sinto-me capaz de as fazer. Eu amo esta casa como a um filho. Dá-me imenso prazer trabalhar aqui. Não trocava o meu passado para poder dedicar-me a qualquer outro tipo de actividade.

CL – Já tem assegurada sucessão para dar continuidade à sua agência?

JCS – Não tenho filhos. Vai ficar por aqui. Morre comigo.

Foto: Paulo Rodrigues

Autor: Luís Curado

1 comentário em “João Cabral da Silva: “Sinto saudades da população de Cascais”

  1. Surpreendido pela excelente entrevista ao meu querido tio João Cabral da Silva.
    Adorei!
    Também sou natural desta bela vila e Cascais. Mas já há muitos anos que vivo noutra cidade igualmente bela. Setúbal.
    Aqui com esta entrevista, ficam-me saudades do meu tio e de Cascais!
    Obrigado ao autor!

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