São Passos: Uma pintora com África sempre no coração

Ainda muito jovem, São Passos começou a despertar um interesse muito vincado pelas artes. Foi em Moçambique, onde nasceu e viveu a juventude, que deu expressão à sua atracção pela Pintura, depois de visitar com algumas colegas da sua turma da escola uma exposição do pintor Albano Neves e Sousa. As formas e cores pinceladas naquelas telas, deixaram-na deslumbrada. Ali mesmo, decidiu tomar uma decisão que passou a acompanhá-la por toda a vida: queria retratar na tela as suas vivências pessoais.

Esses primeiros anos vividos nas cidades moçambicanas da Beira (Sofala) e Quelimane (Zambézia), nunca foram esquecidos. A jovem artista transportou sempre consigo as memórias do país onde viveu com a família. Ali casou e foi mãe pela primeira vez. Ali iniciou a carreira artística, primeiro no campo da Escultura e depois na Cerâmica. A primeira exposição como pintora esteve patente ao público na cidade de Tete. Seguiram-se outras mostras, individuais e colectivas, na Beira, Joanesburgo e Pretória (África do Sul), e Blantyre e Limbe (Malawi).

Quando viajou com a família para Portugal, onde passou a viver definitivamente a partir de 1976, as vivências trazidas das terras africanas continuaram a estar presentes nos seus trabalhos, caracterizados pela variedade dos materiais utilizados. Apesar da evolução do seu percurso artístico e das diferentes técnicas experimentadas, as raízes africanas nunca foram esquecidas nas obras que tem produzido. A primeira exposição individual em Portugal, realizada em 1973, esteve patente ao público em Faro, patrocinada pela Comissão Regional de Turismo.

Desde então, a artista tem exposto os seus trabalhos com frequência em exposições individuais e colectivas realizadas um pouco por todo o País, nomeadamente em Lisboa, Sintra, Oeiras, Coimbra, Loures, Vila Nova da Cerveira, Vilamoura, Alcoutim, Golegã, Albufeira, Portimão e outras localidades, onde as suas pinturas têm merecido a aceitação do público. O jornal ‘O Correio da Linha’ esteve à conversa com São Passos sobre os primeiros passos do seu percurso artístico, as suas raízes africanas e as mais recentes exposições que tem realizado.

 

“A MINHA PRAIA ERA OUTRA”

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como surgiu a Pintura no seu quotidiano como forma de expressão artística?

São Passos (SP) – Com quatro anos de idade, comecei a desenhar e a pintar em tudo o que tinha à disposição: papéis, cartões, madeira, etc.. Na Escola Primária já sentia o gosto pela Arte. Além de aprender a ler e a escrever, nas horas vagas, a Pintura já fazia parte do meu quotidiano. Era o ar puro que respirava. Em 1960, fiz a 4.ª classe e a admissão à Escola Técnica e ao Liceu, em Faro (Algarve), aquando das férias graciosas do meu pai, funcionário dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Nesse ano, a professora primária sugeriu que tirasse um curso de Pintura. Fiquei a pensar nisso. Tinha 10 anos e os meus pais queriam que eu tirasse Arquitectura, mas ‘a minha praia’ era outra.

CL – Tinha alguém na família que já se dedicasse à Pintura?

SP – No Liceu, a minha professora de Desenho e Trabalhos Manuais, Isabel Egídio, ao aperceber-se das minhas qualidades naturais de Pintura e Desenho, incentivou-me a seguir estas artes. Na minha família fui a pioneira, mas tanto a minha irmã, como um dos meus primos, também tinham jeito para as Artes Plásticas.

CL – O que a levou a optar pela Pintura Naif?

SP – Não me considero propriamente uma pintora Naif, até porque os Naifs pintam ‘miudinho’. Eu gosto de dar grandes pinceladas nas minhas telas. A minha Arte tem raiz africana e é moderna, tal como é moderna a pintura de Malangatana. Mas, às vezes, também pinto abstracto, que é a influência de Picasso.

CL – Nas suas obras estão muito presentes os temas africanos? África é um motivo de inspiração?

SP – Nasci em África sob a bandeira portuguesa, por isso sou portuguesa em Moçambique e moçambicana em Portugal. Vá agora uma pessoa compreender. Por vezes dá jeito ter as duas nacionalidades. Até à descolonização tive sempre África no pensamento. África é um motivo de inspiração, mas Portugal e a Grécia também, devido aos meus antepassados.

“AS MINHAS TELAS ESTÃO CHEIAS DE COR”

CL – Teve uma exposição itinerante com o título ‘Rainha da Cor’. Muitos artistas acabam por dedicar-se a um determinado tipo de cor. Não é o seu caso…

SP – Não. As minhas cores são as do Arco-íris, e até o preto e branco é cor. Mas como as minhas telas estão cheias de cor, as pessoas acabam por dizer que sou a ‘Rainha da Cor’.

CL – Como foi viver em África numa fase tão importante da sua vida? Que recordações guarda dessa vivência?

SP – Nasci na Beira, Moçambique. Foi em África que passei as minhas meninice e adolescência. Em Moçambique namorei, tive o primeiro emprego, casei e nasceu o primeiro filho, portanto vivências muito fortes, marcantes e inesquecíveis da minha vida.

CL – Lembra-se do primeiro trabalho que teve exposto?

SP – O primeiro trabalho que expus era uma pintura em madeira, que representava uma aldeia africana com muito Sol e machamba (horta em moçambicano), onde se viam crianças divertidas a brincar.

CL – O que sentiu quando realizou a sua primeira exposição individual?

SP – Senti uma enorme alegria quando realizei a primeira exposição em Moçambique. Uma alegria repetida, mais tarde, quando realizei a primeira mostra em Portugal. As primeiras exposições marcam sempre uma pessoa.

CL – Quais os temas que mais gosta de abordar nas suas pinturas?

SP – Obviamente África, mas gosto também de explorar outros temas, como a mulher, as crianças e/ou pinturas figurativas, como flores, gatos e outros animais.

CL – Últimas exposições realizadas…

SP – No ano passado, realizei duas exposições itinerantes ‘Rainha da Cor’, ambas no Algarve. A primeira foi em Maio, em Albufeira, na Galeria Samora Barros. A outra foi em Setembro, em Portimão, na Casa Manuel Teixeira Gomes, conjuntamente com o meu companheiro João Marques Valentim, que expôs fotografias de sua autoria. A pandemia COVID-19 condicionou muito a realização de várias exposições nossas.

CL – E para este ano, o que está programado?

SP – Em 2023, contamos regressar em força. Tenho já agendadas duas exposições com o apoio da Câmara Municipal de Castelo de Vide e do seu presidente António Pita. Uma será inaugurada no dia 8 de Março, Dia da Mulher, e intitula-se ‘São Passos no Feminino’, e a outra tem inauguração prevista para 21 de Abril, e será também dedicada ao tema ‘São Passos – Rainha da Cor’.

Tenho outras exposições em preparação, mas ainda não têm data marcada. Até ao final do ano, eu e o meu companheiro deveremos realizar uma exposição conjunta em Cascais e/ou Oeiras. E estamos também já a preparar o ano de 2024.

“SONHO TER UMA GALERIA DE ARTE MINHA”

CL – Um sonho para o futuro em termos artísticos?

SP – Sonho ter uma Galeria de Arte minha, onde, para além das exposições permanentes, possa também dar aulas de Pintura e preparar ilustrações para livros infantis. Gosto imenso de ensinar crianças a pintar. Um dos momentos que não esqueço foi quando dei uma aula de Pintura na Academia da Motivação a crianças entre os 6 e os 10 anos.

CL – Tratou-se de uma experiência única, ou já teve mais oportunidades para ensinar a sua Arte às crianças?

SP – Sim, tive. Por exemplo, em Setembro passado, duas turmas do 3.º ano da EB1 Major David Neto, de Portimão, visitaram a exposição ‘Rainha da Cor’, patente ao público na Casa Manuel Teixeira Gomes. Dei uma aula de pintura ao vivo, na qual as crianças experimentaram dar algumas pinceladas numa tela, com tinta acrílica, participando no processo criativo.

CL – Qual a sua técnica preferida de Pintura?

SP – A técnica que mais utilizo é a Pintura em Acrílico, mas também gosto do Mosaico Poliédrico, que dá muito trabalho, e tenho ainda alguns quadros em Carvão e Tinta da China.

CL – Quais os seus pintores preferidos, que mais a influenciaram?

SP – Os artistas que mais me influenciaram foram, por ordem crescente: o escultor moçambicano Alberto Chissano (1935-1994), o pintor português Albano Neves e Sousa (1921-1995), o pintor moçambicano Malangatana (1936-2011) e o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973).

CL – Iniciou a sua carreira artística na Escultura e na Cerâmica. A que se deveu a passagem para a Pintura?

SP – Embora tivesse tido algumas passagens pela Escultura e pela Cerâmica, é a Pintura que me preenche a vida.

CL – O que recorda com maior prazer dos tempos vividos em Moçambique?

SP – Recordo os tempos de meninice, sempre cheia de amizades, que ainda hoje perduram. O casamento com o pai dos meus filhos e até o cheiro a terra molhada quando caíam as primeiras chuvas. África tem um odor próprio. Só quem lá esteve sabe como é.

CL – Como artista, como vê a actualidade?

SP – Em Portugal, existem muitos artistas plásticos, mas só os mais conhecidos é que conseguem singrar e vender bem.  Apesar de tudo, acabo sempre por vender alguma obra em cada exposição. Tenho muitas amizades que seguem o meu trabalho e querem ter algum quadro meu para embelezar a casa. Depois, sempre que olham para ele, lembram-se de mim.

CL – Ainda se lembra do primeiro quadro que vendeu? Qual foi?

SP – De momento não me recordo. Já vendi muitos quadros e já realizei mais de meia centena de exposições. Já passaram mais de 50 anos. O tempo passa depressa…

CL – É possível viver da Pintura em Portugal?

SP – Tal como disse atrás, só os nomes sonantes da Pintura portuguesa é que conseguem viver desta Arte, o que não é o meu caso. A minha ‘almofada’ é a reforma.

 

 COMENTÁRIOS SOBRE A ARTISTA

As obras produzidas por São Passos têm suscitado os mais diversos comentários. “Marcada pelo colorido, a sua pintura transporta-nos a lugares, personagens e objectos num percurso estético pleno de entusiasmo. Parece até que nos convida a entrar, interpretar e desfrutar das suas trabalhadas figurações, muito apoiadas num discurso pictórico modelado por dinâmicas de contemporaneidade”, escreveu Elisabete Oliveira, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Oeiras.

Para o crítico de Arte Vitoriano Rosa, “a artista patenteia em cada quadro uma maturidade de temas e de técnicas plásticas que cativam o mais indiferente.” “O sangue ardente algarvio dos seus antepassados e a alma africana, que se robusteceu no seu espírito, fundiram-se numa criatividade crescente”, assinalou o mesmo autor num texto produzido a propósito da exposição ‘São Passos: Rainha da Cor’.

Já o jornalista Inácio de Passos escreveu: “Se é verdade que cada exposição dos trabalhos de São Passos nos traz uma agradável surpresa – o tema, as cores, o ambiente que cria e alimenta – não deixa de o ser, como factor principal do seu sucesso, o respeito pelas origens da sua arte. Há no todo das suas exposições e em cada um dos seus trabalhos, um pouco de Moçambique, um misto de vários artistas moçambicanos. E cada obra fica nos olhos para sempre, porque foge ao comum e por serem por natureza uma verdadeira arte.”

Autor: Luís Curado

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