Jeremias Lopes: O Polícia que deteve Otelo Saraiva de Carvalho

Com apenas nove anos de idade, Jeremias da Cruz Lopes cedo compreendeu a necessidade de encontrar e desenvolver nele mesmo as aptidões necessárias para cumprir as obrigações que lhe eram exigidas. Na altura, sozinho no monte, o jovem pastor transmontano sentiu no íntimo a necessidade de descobrir Mundo e procurar o seu destino para além das fronteiras da terra natal, Carrazedo de Montenegro (Valpaços, Vila Real), terra de castanha e de gente de têmpera, rija e orgulhosa das suas tradições. Com 16 anos, acabaria por partir rumo à grande capital do Norte, o Porto, cidade onde aprendeu a arte de servir à mesa no conhecido café Leão d’Ouro e os segredos do negócio, que viria a usar mais tarde, numa outra curva do destino, no papel de regressado das ex-colónias à cidade Invicta, com o rótulo atribuído por aqueles que permaneceram no continente assustados com as notícias que chegavam da guerra: retornado.

Antes disso, Jeremias Lopes, cansado do dia-a-dia de empregado de mesa, sentiu vontade de rescrever o seu destino em terras longínquas. A 26 de Abril de 1967, embarcou para a Guiné, onde fez tropa. Não uma ‘tropa macaca’, como se dizia na altura, mas uma tropa perigosa num dos palcos mais difíceis da guerra colonial travada pelo regime ditatorial de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcelo Caetano (1906-1980), dominada pela política do ‘orgulhosamente sós’. Foi na Guiné que o outrora pastor transmontano integrou um grupo de soldados treinado para as piores eventualidades, que os aguardavam em terrenos lamacentos, perigosos, sempre com inimigos à espreita preparados para os emboscar. Os confrontos eram inevitáveis, ferozes e dramáticos. Antes de partir para a Guerra Colonial no Ultramar (1961-1974), o jovem soldado casou, com 20 anos.

Com 21 anos, Jeremias Lopes assentou praça e fez a recruta em Espinho, no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves (GACA) nº 3, vindo a tirar a especialidade de Maqueiro. Acabou por ser colocado do Regimento de Artilharia Pesada N.º 2, na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, e frequentar treinos operacionais na Serra de Santa Luzia, em Viana do Castelo. No final de Abril de 1967, ocorreu o seu embarque para a Guiné, onde ficou destacado em Catió, na Companhia de Comando e Serviços (CCS) do Batalhão de Artilharia 1913. Não demorou muito a viver o seu primeiro teste de guerra. Em meados de Maio, vivenciou o primeiro ataque terrorista, dos vários a que a companhia foi sujeita. A sua actuação debaixo de fogo depressa chamou a atenção, tendo sido reconhecida com vários louvores depois de se ter oferecido como voluntário para integrar operações de risco elevado.

Durante a comissão de dois anos que cumpriu na Guiné, que terminou em Março de 1969, altura em que regressou à metrópole, Jeremias Lopes viu cair muitos companheiros, atingidos pelas balas disparadas pelos soldados dos movimentos independentistas, integrados em grupos de guerrilha, bem dissimulados no terreno que conheciam e totalmente apostados em infligir o máximo de baixas ao Exército português. De maqueiro, categoria com que partiu para África, depois do treino recebido em Portugal, o jovem soldado português, que muitas vezes encostou a maca para pegar na arma e defender a sua vida e dos demais companheiros, desejou rapidamente outras funções, mais de acordo com a sua vontade de fazer mais. Depois de novo treino, passou a fazer parte de um comando especial, cujas funções passavam por procurar acampamentos das forças inimigas e neutralizar essas estruturas.

 

O ‘BICHINHO DA GUERRA’

Cumprido o serviço militar na Guiné, para onde partiu já casado, deixando a esposa à sua espera, Jeremias Lopes regressou ao Porto, por pouco tempo. Atraído pelo desejo de regressar a África, por sentir na pele “o bichinho da Guerra” (como explica), viu um anúncio publicado num jornal a pedir voluntários para ingressar nos corpos militarizados da Guarda Rural de Angola, unidades de reforço às forças policiais no terreno. Estes elementos especiais dos quadros da PSP de Angola eram colocados em zonas rurais junto a fazendas de colonos portugueses alvo de ataques por parte de grupos terroristas ligados aos movimentos independentistas. O antigo pastor decidiu aventurar-se neste novo desafio. Desta feita acompanhado da família, seguiu em Abril de 1970 para o Norte da maior colónia portuguesa em África. Sujeito a treinos especiais ministrados por oficiais dos comandos no aquartelamento de Quicaia, foi colocado no Comando Distrital do Uíge, na região de Carmona.

Integrado num grupo operacional composto por 8/9 elementos, cuja principal missão era afastar os guerrilheiros do F.N.L.A. (Frente Nacional de Libertação de Angola) das zonas ocupadas pelos fazendeiros portugueses, Jeremias Lopes protagonizou várias operações na selva para neutralizar acampamentos inimigos. Os ‘Tantâs’ ou ‘Ratos do Mato’, como eram conhecidos estes grupos operacionais sob comando da PSP, chegavam mesmo a prestar apoio aos militares do Exército Português, furando as linhas inimigas e resgatando soldados emboscados e/ou cercados. Para isso, era vital o total conhecimento do terreno e dos hábitos, usos e técnicas utilizados pelos guerrilheiros para surpreenderem as forças portuguesas. Numa dessas operações, Jeremias Lopes e os seus companheiros conseguiram resgatar uma companhia cercada em plena selva, num aquartelamento que esteve sob fogo inimigo durante vários dias.

Após a Revolução de 25 de Abril de 1974 e com a preparação da independência de Angola (proclamada a 11 de Novembro de 1975 pelo primeiro presidente do país, Agostinho Neto / 1922-1979), Jeremias Lopes regressou a Portugal em Agosto de 1975, depois de algumas peripécias, perseguições e muitas dificuldades, com o estatuto de ‘retornado’, um rótulo incómodo que escondia um sentimento discriminatório latente em quem via os seus compatriotas regressados à Pátria como ameaças na concorrência pelas oportunidades escassas que o País tinha para oferecer. Com ele trazia uma mala cheia de quase nada, um projecto de vida destruído, perdido, deixado para trás, numa terra onde viveu muitas situações complicadas de apuro e bravura, rumo a um país que enfrentava ainda as dores de um ideal de futuro em embrião, construído entre desconfianças e vinganças por cumprir, alimentadas ao longo de gerações.

De regresso ao Porto, sem emprego, sem dinheiro e sem casa, mas recuperando os conhecimentos de outrora, Jeremias Lopes abriu um café (Café Tulipa) na cidade Invicta. Para isso, contou com a ajuda de familiares e com a tenacidade de procurar reconstruir a sua vida longe dos palcos perigosos que conheceu em África. A vida civil durou pouco tempo. As dificuldades trazidas pelo estatuto de ‘retornado’ e a vontade de enveredar por uma vida mais de acordo com as suas aprendizagens levaram-no, mais uma vez, a mudar os trilhos do seu destino. Em Abril de 1976, um aviso-convite para reintegrar a PSP em Portugal despertaram-lhe o ensejo de apostar num novo recomeço. Partiu com a família para Lisboa e acabou por assentar residência em Oeiras, onde ingressou no efectivo da esquadra local, vindo a integrar, pouco depois, as Brigadas Especiais.

Durante os 24 anos em que cumpriu funções neste cargo, parte deste tempo como responsável, Jeremias Lopes acabou por participar e/ou conduzir inúmeras operações de relevo, que lhe mereceram condecorações e louvores por serviços prestados. Entre essas várias missões, destacam-se duas que atraíram a atenção dos órgãos de Comunicação Social: a detenção, em 20 de Junho de 1984, de Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021), no âmbito do processo de investigação às Forças Populares 25 de Abril (FP-25), organização terrorista de extrema-esquerda que perpetrou vários crimes em Portugal entre 1980 e 1987; e o desmantelamento, em Outubro de 1990, de um plano para raptar, roubar e assassinar Francisco da Silva Santos, um importante industrial de construção civil, responsável, entre muitas outras obras, pela construção do Centro Comercial Palmeiras e das torres que o rodeiam, em Oeiras.

NA PRIMEIRA PESSOA

Aposentado desde 1993, Jeremias Lopes, hoje com 77 anos, mantém bem vivas as memórias acumuladas ao longo de uma vida recheada de emoções. Ao jornal ‘O Correio da Linha’ recordou alguns dos episódios mais marcantes que protagonizou, que aqui partilhamos com os leitores.

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Como é que decorreu a sua comissão na Guiné?

Jeremias Lopes (JL) – Eu casei antes de ir para a tropa, cerca de um ano antes. Quando fui para a Guiné, tinha uma filha com apenas 15 dias. Portanto, não foi fácil. A separação foi difícil e era amenizada com cartas, quando havia mais segredos para contar, e com aerogramas, um tipo de carta enviada por correio aéreo sem necessidade de sobrescrito. Não gastávamos nada com elas, porque não levavam selo. Também tirávamos fotografias, que enviávamos um ao outro, mas nós, soldados, contávamos muito pouco sobre o que fazíamos para não assustar as famílias com o que se passava em África.

Cheguei a Catió, na Guiné, a 13 de Maio de 1967. Ao fim de 15 dias, sofremos o primeiro ataque. Eu era maqueiro militar, tirei a especialidade no Regimento dos Serviços de Saúde em Coimbra. Contudo, em todo o tempo que estive na Guiné, costumava ir em missão com as companhias militares. A minha companhia não era operacional, era uma companhia de Comando e Serviços. Mas eu não me aguentava no quartel. Serviço de enfermagem no quartel pouco fiz, oferecia-me voluntário para ir com as companhias operacionais, como combatente.

Cerca de seis meses depois de chegar a Catió, a primeira vez que entrei em combate foi em Cabedu Balanta, na mata, na zona onde Nino Vieira (1939-2009) actuava. Realizámos várias operações, numa delas estivemos em cima de um campo de minas armadilhadas pelos guerrilheiros, que não tiveram tempo de armar os explosivos. Foi uma sorte, podia já não estar cá. Foi-me atribuído o prémio Governador da Guiné e tive louvores por me oferecer como voluntário. Vivi a situação mais complicada quando sofremos um ataque muito forte ao quartel realizado com mais de uma dezena de peças pesadas, canhões, morteiros…

Numa outra operação, deparámos com um acampamento inimigo com várias instalações subterrâneas. Entrámos nesse local depois de alguns tiros trocados com os ocupantes, que acabaram por fugir. Nesse local, descobrimos ainda um armazém carregado de arroz, a que deitámos fogo. Sem nos apercebermos, estavam escondidas ali várias armas, granadas e munições, que começaram a explodir, pelo que tivemos de fugir daquele inferno. Mais tarde, acabámos por ser atacados por um grupo de terroristas argelinos, que repelimos com uma bazucada. Havia terroristas por todo o lado.

CL – Durante a sua passagem por Angola (1970/1975), integrou uma unidade especial que conseguiu resgatar uma companhia cercada por guerrilheiros inimigos. Como decorreu essa operação?

JL – Tratou-se de uma companhia composta por 60/70 elementos liderados por um capitão. Aconteceu no final de 1973 ou início de 1974, já não me lembro bem. Estavam cercados há vários dias por um grupo de guerrilheiros que os atacavam com todo o tipo de armas e não conseguiam sair do local. As chefias contactaram a nossa unidade da Guarda Rural de Angola e pediram-nos ajuda para resolver a situação. Quando chegámos ao local, a companhia já tinha vários homens feridos, alguns com gravidade. Conseguimos furar o cerco e entrar no recinto.

Quando cheguei ao pé do capitão e o informei que estávamos ali para os libertar do cerco, perguntou-me quantos éramos. Respondi que estávamos ali cinco elementos e tinham ficado outros três à entrada, a assegurar a retirada. Ele nem queria acreditar. “Só oito! Então, estamos aqui mais de 60 homens e não conseguimos sair, como é que vocês, que são só oito, vão conseguir fazer-nos sair daqui?!” Mas a verdade é que conseguimos mesmo e eles acabaram por ser evacuados.

O nosso grupo era muito competente e capaz no que fazia. Conhecíamos o terreno, formávamos grupos operacionais de 8/9 homens e fazíamos batidas para afastar os terroristas dos aldeamentos e das fazendas. Conseguimos empurrá-los para longe das nossas posições. Os militares pediam para eu ir com eles, descobrir aquartelamentos escondidos na selva. Eu conseguia dar conta onde eles estavam, estava treinado para isso. Tirei um curso de pisteiro, que me preparou para reconhecer o terreno que pisava.

Foto: Paulo Rodrigues

DETENÇÃO DE OTELO

CL – Participou na detenção de Otelo Saraiva de Carvalho, no âmbito da investigação do processo FP-25. O que pode dizer-nos dessa operação?

JL – Juntamente com um colega meu da Brigada Especial da Esquadra de Oeiras, fui um dos polícias nomeados para passar uma busca à casa do Sr. Otelo. Havia uma carta que tinha as ordens da operação lá dentro, mas que só podíamos abrir quando chegássemos à entrada do prédio onde ele vivia, em Oeiras. Não sei se algum dos dois elementos da Polícia Judiciária (PJ) que nos acompanhava tinha mais algum conhecimento, que nós não tínhamos. Eu levava uma pistola metralhadora, o meu colega levava outra e estávamos à civil, que eu trabalhei sempre à civil.

Quando chegámos, a operação foi executada muito cedo, ainda antes de o sol nascer, tocámos à campainha da residência e veio a sogra do Sr. Otelo. Os elementos da PJ que nos acompanhavam levavam um código para poderem ter um acesso fácil. Disseram: “O camarada que venha, que está a haver problemas…” E o ‘camarada’ veio logo e perguntou: “Então, o que aconteceu?” Quando chegou perto, meti um pé à porta, forcei a entrada, apontei-lhe a pistola metralhadora e fi-lo recuar. A primeira pergunta que lhe fiz foi: “Tem guarda-costas cá dentro?” Ele tinha sempre guarda-costas armados no exterior, dentro de carros, para o proteger.

Na altura, os filhos do Sr. Otelo estavam a preparar-se para ir para o liceu em Oeiras. Mostrámos o mandado que levávamos. Ele leu o mandado. Foi cinco estrelas, não opôs resistência nenhuma. Disse-lhe: “O Senhor já sabe como é que é. Isto é do tribunal. Não vamos criar problemas.” Ele confirmou logo que não o faria e disse-nos para estarmos à vontade, acompanhando-nos nas diligências, nomeadamente na busca que realizámos. Tinha muita propaganda das FP-25, tinha umas armas, que podia ter enquanto militar, e tinha também uma pistola metralhadora muito linda, desmontada numa caixa, que tinha sido oferecida por Fidel Castro. Nenhuma destas armas foi apreendida, porque ele podia tê-las na sua posse.

A propaganda política foi toda apreendida e viemos a descobrir no fundo de uma mala, escondida, uma pequena máquina de escrever antiga e muito pequena, que parecia uma peça de museu, mas notava-se que estava a ser usada. Ao transmitirmos essa informação ao responsável pela operação, ele ordenou a detenção do Sr. Otelo e a apreensão da máquina, que vieram imediatamente recolher. Quando a máquina foi analisada em laboratório deram logo ordem para dar voz de prisão ao Sr. Otelo e mantê-lo detido. E assim fizemos.

CL – Outro dos casos mais mediáticos em que participou, enquanto elemento das Brigadas Especiais da PSP de Oeiras, culminou no desmantelamento de um esquema para tentar sequestrar, roubar e assassinar um importante industrial da construção civil, em Outubro de 1990. O que se passou?

JL – O Sr. Francisco da Silva Santos tinha sido raptado por dois indivíduos, um dos quais vindo da França de propósito para realizar esta operação. A ideia era raptá-lo, sequestrá-lo, extorquir-lhe o dinheiro que ele tivesse, porque se constava que tinha muito dinheiro na Suíça, roubar-lhe o Mercedes topo de gama que ele conduzia e obrigá-lo a ceder o controlo de uma empresa imobiliária de que era dono. Caso os raptores tivessem conseguido os seus intentos, tinham a intenção de matar o empresário, esquartejar o seu corpo e lançá-lo num local ermo. Foi isso que revelou a namorada de um deles.

Os criminosos eram ambos portugueses. Um tinha ido para França com apenas quatro anos. Tinha na altura 28. E o outro, de 24 anos, era de cá, vivia perto da esquadra de Oeiras e era já conhecido por outros crimes. Eram primos um do outro. O Sr. Francisco da Silva Santos foi raptado e andou uma noite com eles, até ser levado para uma casa na Amadora, onde foi torturado, muito maltratado, e onde pretendiam matá-lo após obterem o que queriam. Contudo, a avó de um dos indivíduos, que vivia nessa casa, apercebeu-se do que estava a passar-se e eles já não o mataram.

Os raptores decidiram combinar com o empresário ele ceder-lhes o que pretendiam e irem ao seu encontro no dia seguinte. Como a vítima tinha um amigo na Polícia, tinham sido criados juntos, pediu-lhe ajuda. Esse amigo veio pedir a minha colaboração para resolver o problema. Acabei por ficar a saber que um dos indivíduos tocava piano num bar em Cascais, que a vítima frequentava juntamente com uma amante. Descobriu-se, mais tarde, que todo o esquema foi combinado com esta mulher para se apoderarem das coisas deles. Depois de várias peripécias e diligências, os raptores acabaram por ser desmascarados, detidos e levados a tribunal, que lhes decretou penas de prisão de 9 e 11 anos.

Autor: Luís Curado

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