Serrão de Faria: O Mestre Pintor do Cavalo Lusitano

Escrever sobre a Pintura de José Francisco Serrão de Faria é escrever sobre a essência das suas raízes ribatejanas, é escrever sobre as gentes e as tradições da Lezíria e do Cavalo Lusitano, essa raça nobre criada em Portugal que tanto tem dado que falar além-fronteiras. Conhecido por registar nas suas obras o campo ribatejano, é considerado o grande pintor do Cavalo Puro-Sangue Lusitano, tendo sido o primeiro director do ‘stud book’ (livro de registos genealógicos) sobre estes equídeos com origem em Portugal. Chegou inclusive a criar animais desta raça até 1975, altura em que a sua coudelaria foi destruída durante o chamado ‘Período Revolucionário’.

Na verdade, Serrão de Faria, como é mais conhecido, é um filho do Ribatejo, onde nasceu, a 21 de Fevereiro de 1937, na localidade de Azinhaga do Ribatejo, concelho da Golegã. A proximidade com a terra e as tradições locais levaram-no a interagir com cavalos e toiros no seu ambiente natural. Isso despertou uma paixão que despontou cedo e o fez desenvolver um conhecimento profundo sobre estes animais. Retratou-os profusamente ao longo da sua extensa carreira em inúmeras obras que têm merecido a admiração dos apreciadores dos seus trabalhos de Pintura, Serigrafia e Gravura. É considerado um dos melhores retratistas equestres internacionais.

Um dos primeiros trabalhos que o pintor vendeu, em 1951, foi adquirido pelo avô paterno, que encomendou ao neto vários desenhos para ilustrar o livro ‘Ao Sol da Lezíria’. Um estímulo que o lançou num percurso artístico imparável, de sucesso, com obras representadas em inúmeras exposições e colecções particulares nacionais e estrangeiras. Como tema central, destacam-se os temas equestres e tauromáquicos, mas também produziu trabalhos sobre as principais castas de uvas portuguesas (no livro ‘Vinho com Arte’) e álbuns com ilustrações dedicadas ao Futebol e às cidades de Lisboa e Porto, bem como à vila de Oeiras.

Ao longo da sua vida, Serrão de Faria publicou cerca de duas dezenas de livros, entre os quais se destacam ‘Arion – O Cavalo Peninsular’, ‘Caballus’, ‘Ao Sol da Lezíria – Quadros Ribatejanos’, ‘O Ginete Ibérico’ e ‘O Solar do Cavalo’. Colaborou ainda com vários jornais e revistas, nomeadamente num suplemento tauromáquico publicado no jornal ‘A Capital’, assinado pelo jornalista José António Lázaro. Paralelamente à sua carreira artística, protagonizou também um importante percurso empresarial no sector agrário, mantendo há mais de 30 anos uma empresa sólida (Casa Agrícola Serrão de Faria, Lda.) ligada a culturas de produtos hortícolas, raízes e tubérculos.

Mais recentemente, o pintor sofreu um traiçoeiro AVC, que limitou a sua produção artística, mas não apagou a chama e a paixão que sempre o têm ligado à sua terra natal e continuam a despertar o desejo de abraçar novos projectos. Uma relação de excelência que a Câmara Municipal da Golegã quis assinalar com a distinção, mais do que merecida, de atribuir o nome de Serrão de Faria a uma rua da localidade que o viu nascer, a mesma terra de origem do Prémio Nobel da Literatura José Saramago (1922-2010). O jornal ‘O Correio da Linha’ foi conhecer melhor o artista, cuja família é considerada a mais antiga da povoação, com presença registada desde o início do século XVI.

Foto: Paulo Rodrigues

JUVENTUDE NA AZINHAGA DO RIBATEJO

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – A sua família sempre esteve ligada à Azinhaga do Ribatejo, desde há muito. Como é ser herdeiro deste percurso e tradição?

Serrão de Faria (SF) – A minha família está ligada à Azinhaga desde o século XVI. 1500 é a data da construção da casa de família. Ser herdeiro é complicado. Foi um dos motivos que me levou a doar à Torre do Tombo o espólio documental da família, porque achei que era minha obrigação manter públicas as memórias históricas desta região.

CL – Como recorda a sua infância nesta localidade?

SF – Durante o ano escolar vivia em Lisboa. Nas férias vinha para a Azinhaga, onde se desenvolveu a minha ligação ao cavalo e ao seu mundo. Aos quatro anos, comecei a montar um burro, grande e manso, a que o povo chamava ‘burro espanhol’. Posteriormente, comecei a montar um cavalo, nascido na casa agrícola do meu avô, que se chamava Emir, de raça Lusitana, ruço, que me acompanhou durante toda a minha juventude.

CL – Que influências o levaram a optar pela Pintura como forma de expressão artística? Tinha algum exemplo na família?

SF – Foi, sobretudo, Mestre João Veiga, que me convidou a ir para o campo pintar paisagens à maneira impressionista, pintura de cavalete, que esteve na moda durante a época da pintura ‘Impressionista’ em França, onde João Veiga tinha estudado Pintura nas Belas-Artes de Paris. Também, desde muito pequeno que me habituei a ver a minha mãe pintar, sobretudo retrato. O meu avô materno, Roberto Caldeira Sardinha Durão, também pintava, conservando eu algumas das suas obras.

CL – Quais os pintores que mais o influenciaram, em Portugal e no estrangeiro?

SF – Em Portugal: João Veiga, Manuel Fernandes, Rosa Mendes e Ramos Ribeiro. No estrangeiro, depois de ver na Gulbenkian uma exposição de pintores impressionistas franceses: Claude Monet, Vincent van Gogh, Paul Gauguin e Vieira da Silva.

“CRESCI RODEADO DE CAVALOS DA RAÇA LUSITANA”

CL – O que o levou a dedicar grande parte da sua obra artística ao Cavalo Lusitano?

SF – Cresci rodeado de cavalos, sobretudo de raça Lusitana. Sempre fui um entusiasta destes animais. Estive na origem do livro genealógico desta raça, juntamente com o Engenheiro Fernando Sommer de Andrade.

CL – Chegou a ser criador do Cavalo Lusitano, uma actividade que ficou interrompida em 1975. Desde essa fase, voltou a relançar esta actividade?

SF – Tive uma coudelaria na minha actividade de empresário agrícola que foi destruída pela ‘reforma agrária’ de 1975. Não voltei a relançar esta actividade, pois estava muito desiludido com o que tinha acontecido. Os membros da reforma agrária mandaram todos os cavalos para o talho, pois diziam “que os cavalos eram o gado dos fascistas”.

CL – Na sua opinião, quais são as principais características do Cavalo Lusitano?

SF – A mobilidade do Cavalo Lusitano e ter o dom de adivinhar os desejos e a vontade do cavaleiro. É precisamente isso que o distingue de todas as outras raças, estando o Lusitano na base de todas as raças de cavalos de desporto do Mundo.

CL – A criação do Cavalo Lusitano é devidamente apoiada e explorada? Podia ser feito mais?

SF – Não, não é.  Claro que se podia ter feito muito mais. Pelo menos, podia não se ter destruído o que estava feito, como aconteceu no meu caso. O apoio está na média do apoio que dão ao resto da agricultura nacional. Ainda agora, nos Jogos Olímpicos do Japão, vários cavalos lusitanos se destacaram na modalidade de ‘Dressage’ e nada disso foi devidamente publicitado.

‘Guizo’ foi o cavalo Lusitano que até hoje teve a melhor classificação nos Jogos Olímpicos e creio que faltaram ajudas, senão não teria que ir integrado numa equipa espanhola… Não esquecendo que o primeiro cavalo Lusitano a estrear-se nestes jogos foi há 30 anos, ‘Orfeu’, montado por Catarina Durat.

CL – Em termos artísticos, o que ainda lhe falta fazer? O que gostaria de fazer que não lhe foi possível concretizar?

SF – A maior parte do meu trabalho tem-se baseado na técnica impressionista-realista à maneira da técnica que aprendi. Ainda irei fazer exposições de pintura baseada em técnicas mais recentes, que estou a desenvolver.

CL – Qual o prémio que recebeu com mais prazer?

SF – Em 1974, ganhei numa exposição colectiva na Feira do Ribatejo com um óleo chamado ‘Mudança de Pastagem’. Mas prazer, prazer, foi ter ganho os jogos florais do Liceu de Santarém com um conto intitulado ‘Pássaro de Fogo’, quando tinha 14 anos.

CL – Ao longo da sua vida, tem retratado muitas personagens que vivem na Lezíria, muitos elementos e tradições do Ribatejo, as suas gentes, as suas riquezas naturais. O Meio Rural é devidamente reconhecido pelo poder central?

SF – O Meio Rural não é devidamente reconhecido pelo poder central, podendo fazer-se muito mais através da descentralização deste poder. Já agora, refiro que pintei os retratos de todos os presidentes da Câmara Municipal da Golegã desde a República, que estão expostos no salão nobre desta Câmara.

RONALDO, EUSÉBIO E OS CINCO VIOLINOS

CL – Tem um livro publicado sobre o Futebol (‘Futebol, Iluminuras e Textos Consagrados’). Quais os futebolistas que mais apreciou e aprecia?

SF – Ronaldo, Eusébio, claro, e os Cinco Violinos do Sporting (Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano). Este livro foi um desafio do meu saudoso amigo Carlos Consiglieri, falecido durante este ano.

CL – Como tem sido conciliar as várias actividades que desenvolve, entre o meio artístico, criador de cavalos e empresário no sector agrícola? Como gostaria de ser recordado?

SF – Não foi fácil, mas como a segunda grande paixão é a Agricultura… lá tenho conseguido.  Gostaria de ser recordado como pintor e ilustrador de livros.

CL – Algum dos seus descendentes mostrou gosto em seguir as suas pegadas no meio artístico?

SF – Não.  Infelizmente nenhum herdou esta minha faceta.

CL – Como antevê o futuro do Ribatejo, da Lezíria, e das tradições locais? Estão a perder-se, ou pelo contrário, têm vindo a ser reforçadas?

SF – Não antevejo um futuro muito risonho, sobretudo se a Agricultura continuar a basear-se na monocultura do milho.

CL – Um dos seus principais trabalhos levou-o a pintar quintas e paisagens das várias regiões vitivinícolas portuguesas. O que mais o impressionou nesta viagem por todo o País?

SF – O que me impressionou mais foi a harmonia com que os vinhedos se integram tão bem em todas as diversas regiões do País.  Sobretudo no Douro, que não é por acaso que é a região demarcada mais antiga do Mundo.

CL – Pintou, em aguarela, as 50 principais castas portuguesas. Quais são aquelas que mais aprecia?

SF– As tintas, sobretudo as do Douro.

CL – Em 2009, doou um importante espólio documental da sua família ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo. O que representou para si esta iniciativa?

SF – Quando, em 2009, constatei que o arquivo paroquial e o arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Azinhaga tinham sido destruídos durante as invasões francesas, resolvi fazer essa doação, tentando compensar essa lacuna com os documentos que miraculosamente tinham escapado na minha família.

CL – Entre o Desenho, a Pintura e a Gravura, qual destas artes mais aprecia?

SF – Aprecio o Desenho porque em miúdo queria fazer Banda Desenhada. O Desenho e a Gravura são artes semelhantes, pois a Gravura é feita à base de muito desenho.

CL – A Família Serrão de Faria Pereira é a família mais antiga em Azinhaga do Ribatejo, sendo que a sua presença na localidade está registada desde o início do séc. XVI. Alguma vez pensou em criar um espaço museológico na propriedade da família?

SF – Não, porque não tenho material suficiente para tal projecto. Como já referi, a rapina do exército francês, juntamente com o incêndio ocorrido na Casa de Família cortaram a possibilidade de realização de qualquer projecto. Tudo o que tínhamos, dois mil e tal documentos, estão na Torre do Tombo

CL – Ao longo da sua vasta carreira, qual a obra ou conjunto de obras que realizou com mais prazer?

SF – Foram as encomendas da Câmara Municipal da Golegã para colocar na escadaria da sede do Município o retrato equestre do Rei D. Sebastião e o retrato equestre de Carlos Relvas, que foi o munícipe que doou ao Município os terrenos onde hoje se situam a Câmara Municipal, o Tribunal e os restantes serviços camarários.

Autor: Luís Curado

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