Fernando Santos: “O meu livro dava para um filme”

Fernando Santos tem 63 anos, é um desempregado de longa duração e reside no concelho de Cascais desde 1970. Tal como os restantes cidadãos, tem vivido as imposições ditadas pela pandemia COVID-19. Confinado em casa, resolveu pôr mãos à obra e despender energias num projecto guardado há muito na memória. Tudo começou quando, com apenas 16 anos, decidiu entrar como voluntário para a Marinha, iniciando um percurso militar recheado de peripécias e dificuldades, que quis deixar expressas no livro que escreveu sobre essa sua experiência.

‘O Peixe de Ferro’, nome que decidiu dar à sua obra, dá conta de episódios marcantes que viveu enquanto marinheiro a bordo de vários navios de guerra da Armada portuguesa, um dos quais o submarino S-37 ‘Pátria’, que inspirou o título do livro. Nesta recolha realizada com o auxílio das memórias da juventude, Fernando Santos assina um livro de aventuras, autobiográfico, que relata acontecimentos vividos nos anos setenta do século XX, uma década marcada pela Revolução do 25 de Abril de 1974 e pelos acontecimentos que se lhe seguiram, determinantes para a História de Portugal.

Depois de contactos estabelecidos com editoras, o autor de ‘O Peixe de Ferro’ optou por não aceitar as condições oferecidas, mas não desistiu do seu projecto. Por isso, decidiu avançar em frente com a publicação online da obra, cedida gratuitamente aos leitores, em ficheiro PDF, a quem desejar solicitá-lo através do contacto: fernandosantos.mte@hotmail.com. Basta indicar a frase “quero o livro do submarino”. Até agora, os resultados têm sido excelentes, tendo superado as expectativas. Aqui fica a conversa mantida com o autor desta ‘aventura’:

Foto: Paulo Rodrigues

Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – O que o levou a escrever este livro?

Fernando Santos (FS) – Motivou-me escrever ‘O Peixe de Ferro’ o gosto pela escrita e poder contar a minha vida de ex-marinheiro.

CL – Tem outras obras escritas? 

FS – Não tenho mais livros meus.

CL – O que significa para si a Escrita?

FS – A Escrita é ‘falar por palavras’, o que requer um dom que por vezes não tem a ver com estudos. Ajuda muito ler, ler muito, pois aí também se aprende, mesmo tendo poucos estudos. Claro que quem não estude nada, certamente terá dificuldades com o Português. Acho que o meu ‘segredo’ foi ter passado por uma época em que, na 4ª Classe, ai de quem desse um erro, não soubesse conjugar correctamente um verbo, falhasse na pontuação. Quem passasse no exame da 4ª Classe já não era ignorante nenhum, atenção.

Acho que tenho alguma habilidade para a Escrita, modéstia à parte, mas depois há que estar no ‘ponto’, inspirado, e mesmo assim com muita disciplina (escrever todos os dias). Mesmo para quem tenha o dom da Escrita, escrever é exigente e trabalhoso. O meu livro levou seis meses a nascer, com escrita de manhã e à tarde, fora correcções, e correcções, e correcções, sempre a querer melhorá-lo. Reformulei-o, acrescentei-lhe coisas, tirei outras, pensei sempre no leitor, que deveria ficar agradado com o que lesse, como se estivesse entusiasmado a ver um filme.

Foto: Paulo Rodrigues

“O COMPANHEIRISMO ENTRE PRAÇAS ERA BOM”

CL – O que o levou, ainda tão jovem, aos 16 anos, a optar por seguir a vida militar? Tinha algum exemplo na família?

FS – Não tinha exemplos de militares na família. Ir para a Armada foi o que me surgiu em ‘fuga’ por não querer estudar mais e andar a chumbar durante anos. Como nunca tinha trabalhado em nada, o que iria fazer? Olha, fui para a Marinha. Passavam o anúncio na televisão e eu inscrevi-me. O meu pai teve de assinar uma autorização, pois eu era menor. Entrei em 1974, pouco depois do 25 de Abril e ainda com 16 anos, dado que fazia os exigidos 17 ainda nesse ano, em Dezembro.

CL – Qual a melhor experiência que retirou dessa vivência enquanto militar?

FS – O companheirismo entre praças era bom. Também foi bom ter sido instrutor de Educação Física nos últimos dois anos de Marinha, a seguir à minha ‘fuga’ dos submarinos. Gostava muito do que fazia e era bom instrutor. Os meus alunos gostavam de mim e eu raramente tinha de levantar a voz. Era humano para eles, não me aproveitava da minha posição de instrutor e eles valorizavam isso.

Dei aulas a recrutas no quartel de Vila Franca de Xira, na Escola de Alunos Marinheiros. Estava colocado na Natação, mas se preciso fosse dava aulas de outros desportos. Era um bom atleta, com boa compleição física. No entanto só podíamos exercer essa função por três anos, depois retornávamos à antiga especialidade. Assim vigoravam as coisas na Marinha, nunca percebi porquê. No meu caso (operador de radar), significava voltar aos navios e estava farto daquela vida. Assim, abandonei a Armada a meu pedido, em 1982, e nunca me arrependi. Saí com a caderneta militar limpa e a 1ª classe de comportamento. Nunca sofri castigos. Não prejudiquei a Marinha nem o Estado português.

CL – E qual o pior momento que viveu enquanto militar/marinheiro?

FS – O pior momento que vivi foi o embarque no submarino, mas nos outros navios também amarguei um bocado. Tive algumas situações de risco, nomeadamente no serviço de embarcações ligeiras, escaleres, botes de borracha, mas também tive um comandante de uma corveta onde prestei serviço nos Açores, um excelente comandante que conseguia atracar o navio em poucos minutos como nunca tinha visto, que soube reconhecer isso e me atribuiu no fim da comissão um louvor muito elogioso e cinco dias de licença por mérito, que tenho averbado na minha caderneta militar. Devo referir que não era muito comum os praças receberem louvores.

Foto: Paulo Rodrigues

“SENTI OS OITO ANOS NA MARINHA COMO UMA PENA DE PRISÃO”

CL – Em termos de balanço geral, gostou de ter sido militar, ou hoje arrepende-se disso?

FS– Não gostei da Marinha. Senti os oito anos como uma pena de prisão que tivesse de cumprir. Detestava aquela vida. Nunca me senti adaptado, e sei que esse sofrimento também era sentido por muitos colegas meus, pois desabafávamos uns com os outros.

CL – Qual foi a missão mais arriscada em que participou a bordo do submarino referido na sua história?  

FS – A missão mais arriscada no submarino foi, no fundo, andar lá embarcado. Mesmo em tempo de paz e sem manobras navais, fingindo guerra, andar num submarino é sempre arriscado. Não há escaleres nem balsas salva-vidas que valham à guarnição. Há várias tragédias com naufrágios de submarinos um pouco por todo o Mundo, mesmo sem ser em combate ou em exercícios. Em 1968, um submarino igual àquele em que eu andei embarcado, pertencente à Marinha francesa, afundou-se misteriosamente sem nunca se saber exactamente porquê, tendo morrido toda a guarnição, 52 homens.

CL – Depois das experiências que viveu na Marinha, como ficou a sua relação com o Mar? 

FS – Não gosto do Mar. O Mar, para quem o conheça bem, mete medo, pela brutalidade de força e violência de que é capaz de se transformar. As pessoas nem imaginam o que é o Mar. O Mar não é um calminho cruzeiro num monstro de navio que não abana uma palha e que navega no Mediterrâneo em Agosto. O Mar não é para brincar. Não mete respeito, mete medo. Claro que muita gente terá de lá andar a ganhar a vida. É uma vida arriscada, que deveria ser reconhecida. Sempre me afligiu ver na nossa costa pescadores em diminutas embarcações muito longe de terra. O que aquela gente arrisca para ganhar a vida… Eu ainda estava dentro de um navio de guerra, agora eles navegam numa casca de noz.

CL – Qual o conselho que daria aos jovens que pensam em ingressar na vida militar, nomeadamente como marinheiros?

FS– Quem for para a Marinha deve estar preparado para uma vida dura, exigente, por vezes perigosa, cheia de disciplina rigorosa. No fundo tem de ser assim. A Marinha Militar, a Armada, não é recreio. E atenção que na Marinha Mercante também não é para lá andar a brincar.

CL – Os militares deviam ser mais considerados?

FS – Os militares só são lembrados em situações de crise ou guerra, mas são um dos pilares de qualquer nação. O Estado desprezou os nossos antigos militares da Guerra de África. O Serviço Militar Obrigatório deveria ser reactivado. Todo o cidadão válido deveria dar um mínimo de contributo ao País, servindo nas Forças Armadas. Se depois não quisesse continuar, passaria à vida civil.

CL – Na sua opinião, é importante Portugal ter submarinos na sua Armada? Ou seria mais interessante ter outro tipo de navios?

FS – Sim, é importante termos submarinos, e talvez devêssemos ter mais um, para completar três unidades, como no meu tempo. Um em reparação prolongada, um em saídas de costa, treinos de pessoal, e outro em grande operacionalidade, pronto para largar logo da base, em caso de necessidade. O submarino, não sei valores actuais, custa um terço de uma fragata. Chamavam-lhe a ‘arma dos pobres’. Tendo em conta o seu poder combativo, é uma boa relação custo/benefício. 

Além disso, um submarino pode andar dias e dias a seguir um navio suspeito de transportar droga, caladinho que nem um rato, sem que ninguém o veja. De repente, surge à superfície e intercepta o ‘inimigo’, enquanto que um helicóptero poderá ser rapidamente enviado de uma fragata ou de terra, e descarregar lá um grupo de fuzileiros que farão uma abordagem relâmpago. O Estado que dê meios à Armada, que ela saberá trabalhar, não duvido.

Foto: Paulo Rodrigues

“MEIOS ESCASSOS PARA PROTEGER ZONA ECONÓMICA EXCLUSIVA”

CL – Portugal possui uma enorme Zona Económica Exclusiva (ZEE), das maiores do Mundo. Na sua opinião, esta ZEE está bem defendida?  

FS – Penso que os meios militares são escassos para protegermos a ZEE. Num país pobre em que tudo se corta, a Marinha também havia de sofrer com isso. Atenção, que já no meu tempo era assim, pois às vezes ‘canibalizava-se’ um navio para que determinadas peças equipassem outro que estava ‘doente’, tornando-o operacional.

CL – Na vida civil, qual foi a profissão que desempenhou?

FS– Tive várias profissões depois da Armada. Fui um ‘sobrevivente’, por assim dizer. O que mais gostei de fazer, e foi o meu último trabalho, foi ter sido motorista de transporte de crianças para as escolas. Nunca tive filhos, mas lidava lindamente com os miúdos, eles adoravam-me, os pais também, porque ‘quem meus filhos beija minha boca adoça’. Recebia sempre várias gratificações pelo meu trabalho, no Natal e na Páscoa. E problemas na condução, zero. Sempre fui bom condutor, com muita destreza para guiar e sem fazer mal aos outros. Em 2012, adoeci e fui obrigado a retirar-me, pois comecei a faltar algumas vezes devido a consultas e/ou tratamentos.

CL – Está desempregado desde essa altura?

FS – Sim, sou desempregado de longa duração desde 2012. Nada recebo do Estado português, pois a única coisa a que teria direito seria o Rendimento Mínimo (RSI), que não chega a 200 euros, e em que o Centro de Emprego de Cascais/Segurança Social me iria fazer a vida negra com cursos, palestras e apresentações. No entanto, essa gente sabe que eu nunca lhes darei o prazer de tirar de lá a minha inscrição, mesmo nada recebendo. Isso era ser simpático para com um organismo/um Estado que vê os desempregados com asco e desprezo, tratando-os muitas vezes como cadastrados com apresentações regulares à PSP/GNR. 

Foto: Paulo Rodrigues

“GOSTAVA DE MORRER DEPOIS DE MINHA MÃE”

CL – O que gostaria de ter feito ao longo da sua vida que ainda não lhe foi possível?

FS– Gostava que Deus me permitisse morrer só depois de minha mãe, que não tem mais ninguém, e que fosse eu a acompanhá-la no seu fim de vida (está num Lar, tem 93 anos) e fazer-lhe o funeral condignamente. O contrário era bastante triste, e acho que Deus, com quem falo todos os dias, me irá conceder essa graça. Depois posso ir logo, que não vivo deslumbrado com a vida. Gosto de sentir o que os hindus chamam de ‘Sanyasa’ (despojamento, desapego) e pensar mais na alma do que no corpo, até porque o corpo perdê-lo-emos sempre, enquanto a alma poderemos salvá-la ou não.

CL – Além da Escrita, gostaria que o seu livro pudesse ter outro tipo de abordagem? Por exemplo, um filme?

FS – Acho que o meu livro poderia dar um filme. Não por mim, que não sou ninguém. O que eu passei muitos outros homens – praças, sargentos e oficiais – passaram na Marinha (nas Marinhas de todo o Mundo), mas seria interessante passar a filme pela história em si, pelo tema. Se há tanta gente a gostar do que escrevi, e já percebi que sim, em Cinema também deveria colher algum interesse…

CL – Optou por oferecer este seu livro aos leitores. Ficou descontente com as editoras que contactou para a sua publicação? O que lhe propuseram?

FS – Três editoras queriam o meu livro, percebi logo que sim, e não estavam a fazer favor. As condições, no entanto, eram eu ceder-lhes o livro praticamente de graça, ou até ainda pagar por cima. Optei por fazer o que estou a fazer: o livro vai gratuito para quem mo quiser pedir e quem quiser contribuir que contribua, estipulando o que quer dar. Quem não quiser, não dá nada. Para as editoras é que o meu livro não vai. Assim, é um ‘livro do povo’, para todos, mesmo os que nesta fase de pandemia e crise não possam pagar por ele. Mais democrático não pode ser e, às vezes, sempre vou recebendo qualquer coisinha.

CL – Qual o ‘feedback’ que está a receber dos leitores? Tem ideia de quantas pessoas já leram o livro?

FS – Tenho recebido pedidos sem parar. Não pensei que o meu livro, para mais da forma sui-generis como eu o coloquei no mercado (pequenos ‘cartões de visita’, em alguns locais, cafés, etc.), pudesse suscitar tanto interesse. Leitores há, que antes de lerem o meu livro, querem fazer logo uma doação, pedindo o IBAN, que está indicado na página 3. Tenho recebido muitos elogios ao livro. Não acho que seja nada por aí além, mas pronto, as pessoas estão a gostar, de facto.

CL – Planos para o futuro no que à escrita diz respeito?

FS – Tenho o esboço de um outro livro na cabeça, na continuação deste. Vamos ver se reúno condições na minha vida para me atirar a ele. Um livro não é quando a gente quer, tem de haver predisposição, inspiração. E não gosto de defraudar quem leia uma coisa minha, mesmo que nada me pague por isso.

CL – Como tem vivido esta pandemia? 

FS – A pandemia passa-me ao lado. Se morrer dela, não venho a morrer mais à frente do cancro que tenho. Faço yoga todos os dias, sozinho, num jardim público. Alivia-me o corpo e pacifica-me a mente. Até já pratiquei yoga na entrada de uma igreja (fechada) fiz, na proibição dos jardins. Abstraio-me. Ando a pé. Rezo. Penso em quem possa ajudar, no que me for possível. Gosto de fazer o bem, e é isso que nos eleva da condição de animais. Tenho muita pena na onda gigantesca de desempregados que se está a formar, muitos com crianças para sustentar. Tenho muita pena. 

PRINCÍPIO DA HISTÓRIA

O livro ‘O Peixe de Ferro’ é fruto da experiência vivida por Fernando Santos, alistado como voluntário na Marinha de Guerra Portuguesa aos 16 anos e embarcado num submarino durante os anos setenta do século XX. A história escrita por este homem, que ingressou na Armada em Julho de 1974, e saiu em 1982, um período de oito anos durante o qual esteve embarcado em cinco navios de guerra (um submarino, uma fragata e três corvetas), começa assim: 

“O submarino é um sinistro tubarão negro que evolui sem pressa, despercebido e em silêncio, subindo das profundezas à superfície em menos do nada mal fareja a presa. Qual barbatana a riscar as águas, eleva o periscópio e espreita pelo olhinho mau a vítima desprevenida.

Num repente de dentada dilacerante, lança um ou dois torpedos à embarcação visada. Ataca de surpresa, devastando o mais que pode. Em segundos, a explosão, os gritos, o horror de um casco dilacerado e água a entrar a jorros.

Tão rápido quanto o ataque e ainda o navio agoniza, o esqualo assassino desaparece sem deixar rasto, mergulhando fundo. Quando dão por ele, já está longe, incógnito, no negrume do oceano, muitos metros abaixo da superfície. Peixe predador, anjo apocalíptico, terror dos mares, prepara, calado, uma nova caçada. Navega, como sempre, em silêncio. Como um tubarão…”

Autor: Luís Curado

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