Ao longo dos seus 32 anos de existência, o jornal ‘O Correio da Linha’ tem alimentado sempre o propósito de divulgar e apoiar as associações de cariz social, cultural e desportivo da Amadora, Cascais, Oeiras e Sintra. Nestes dias especiais, dominados pelas medidas excepcionais decretadas devido à pandemia COVID-19, continuamos a disponibilizar as nossas páginas junto das instituições que marcam a diferença nestes quatro concelhos. Temos vindo a enviar questionários a várias associações para, através das suas respostas, exporem aqui os problemas e dificuldades que enfrentam. Hoje, é a vez da Associação de Surdos da Linha de Cascais (ASLC).
Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – Que tipo de serviços presta a vossa Associação?
Carlos Martins, Presidente da ASLC (CM)– A nossa Associação proporciona actividades, essencialmente, culturais, desportivas e formativas, entre as pessoas surdas do concelho ou fora dele, mas onde igualmente podem participar os ouvintes. Temos também o ensino da Língua Gestual Portuguesa, através de cursos ministrados por um professor surdo e, evidentemente, licenciado em Língua Gestual Portuguesa. Fazemos ainda muitos convívios, para que a comunidade possa estar em pleno, usando a sua língua, a gestual.
CL – Quantos associados têm?
CM– Temos cerca de 450 sócios.
CL – Antes de ter sido decretado o Estado de Emergência e o consequente confinamento social, levavam a cabo várias actividades com os vossos sócios. Têm feito algum tipo de atividades para evitar o isolamento dos vossos associados?
CM– Mantemos o contacto por videochamada por exemplo SKYPE e ZOOM. E continuamos disponíveis para qualquer situação para assegurar a comunicação acessível para todos. E também temos felizmente uma intérprete a estagiar connosco que vai dando uma assistência, mas quando ela for embora, volta tudo ao mesmo, porque ela só está a estagiar.
CL – Tem-se ouvido muito que a informação é uma importante arma no combate à Covid-19 sendo que, para isso, ela tem de ser acessível a todos. Quais têm sido as principais barreiras encontradas pela comunidade surda no acesso à informação?
CM– Infelizmente, as barreiras são sempre as mesmas, com ou sem COVID-19. A falta de Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, a falta de adaptação de meios auditivos para visuais, falta de legendas e, claro, podermos comunicar na nossa língua, a língua gestual, que ninguém sabe, mas que muita gente até tem interesse em aprender, mas não sendo uma prioridade, e não havendo incentivos para isso, ninguém aprende.
CL – Numa altura em que se vive sobretudo das tecnologias de comunicação e de informação – seja para a realização de teletrabalho ou para o tratamento de documentos, por exemplo –, quais as formas encontradas pela comunidade surda para ultrapassar as dificuldades inerentes à comunicação através deste tipo de tecnologias?
CM– As videochamadas, pelas diferentes aplicações existentes (por exemplo: Whatsapp, Skipe, Messenger e também as plataformas de trabalho, como o ZOOM), são essenciais. Basicamente, seria importante que TUDO fosse legendado, e claro, os Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, que fazem a ponte de comunicação, são as peças fundamentais. Como, por exemplo, os existentes, nas instituições como a Call-Center da FPAS, o SERVIIN, SNS 24 e MAI 112, que oferecem esta possibilidade.
CL – Tem-se verificado uma maior presença de intérpretes de linguagem gestual nas televisões e à sua saída do conhecido ‘quadrado’ para um local de maior destaque. O que é que isto representa para vocês?
CM– Antes de mais, permita-me a correcção: é Língua Gestual e não linguagem, pois trata-se de uma Língua reconhecida pelo Estado português, pela Constituição da República Portuguesa (Lei n.o 1/97, de 20 de Setembro de 1997) diz, no seu artigo 74, no 2, alínea h) “Proteger e valorizar a Língua Gestual Portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades.” Quanto aos ‘quadrados’, já nem deviam existir porque são minúsculos. Os nossos olhos são sempre o nosso meio de comunicação, cansam-se muito mais que quaisquer pessoas não surdas, porque é através deles que entra toda a informação. Olhar para um ‘quadrado’ é muito desgastante, e não se aguenta muito tempo. Para não falar que muitos surdos têm baixa visão, para esses então é impossível. O destaque dos intérpretes é crucial, aumentar ou preferencialmente abolir os ‘quadrados’ devia ser uma prática obrigatória, assim como as legendas.
CL – A linha Saúde 24 tem agora a possibilidade de realização de videochamadas através de Língua Gestual Portuguesa. Com funciona esta modalidade?
CM– É exactamente assim, por videochamada, ou seja, nós ligamos, atende um Intérprete de Língua Gestual, e o mesmo faz a ponte de comunicação com o profissional de saúde, traduzindo o que gestuamos para voz ao profissional de saúde, e traduzindo para gestos o que diz o mesmo profissional de saúde.
CL – Perante a necessidade do uso de máscaras para prevenir o contágio e, sendo a leitura labial uma importante ferramenta de comunicação da comunidade surda, qual pensam ser a melhor forma de ultrapassar esta barreira?
CM– Noutros países, há máscaras com a zona central (que taca a boca) transparente. Aqui em Portugal, não há. A melhor forma de ultrapassar essa barreira era importarem ou fabricarem cá essas máscaras. Mas como sempre, teremos que nos desenrascar, avisaremos que somos surdos, e a pessoa ou aceita baixar a máscara um bocado para fazermos a leitura labial, ou pediremos para escrever. Estratégias que aqui escritas parecem fáceis, mas quase impossíveis de pôr em prática.
CL – Celebrou-se recentemente o Dia Nacional da Educação de Surdos numa altura em que se assiste ao regresso da telescola que já foi alvo de algumas queixas por parte da comunidade surda. Quais são as principais adversidades apontadas?
CM– Eu faria a pergunta ao contrário. Quais são as adversidades não encontradas… Desde os conteúdos não estarem adaptados aos meninos surdos, aos intérpretes terem dificuldade em aceder a esses mesmos conteúdos a tempo e horas, à janela de interpretação ser minúscula… Uma lista extensa!
CL – Esta crise sanitária obrigou também à criação e posterior divulgação e aprendizagem de nova terminologia (como COVID- 19) no que respeita à Língua Gestual Portuguesa. Como funciona este processo?
CM– A Língua Gestual, como outra qualquer língua, sofre alterações. Da mesma forma que são criadas palavras, assim são criados gestos, em linguística chama-se a este fenómeno: Neologismos. Também podem ser importados gestos, como são importadas palavras, a este fenómeno chama-se linguisticamente: Estrangeirismos.
CL – Quais têm sido as principais dúvidas e problemáticas apresentadas pelos vossos associados?
CM– Pensamos que as dúvidas e problemas são comuns à população em geral. As preocupações são iguais, temos que acompanhar a informação transmitida, o que, com os intérpretes presentes nas conferências de imprensa, nos facilita bastante. Assim eles estivessem em todo o lado.
CL – Têm contado com algum apoio por parte das Câmaras Municipais ou das Juntas de Freguesia?
CM – Sim… Pensamos que só pedimos o essencial, e por isso não é difícil responderem aos nossos pedidos.
CL – Que medidas gostariam de ver tomadas como forma de apoio à comunidade surda?
CM– As pessoas aprenderam Língua Gestual seria um mundo perfeito. Sendo realistas, se tivéssemos Intérpretes em todos os espaços ou diretamente a trabalhar connosco seria o ideal, alguém que nos possa acompanhar para traduzir toda a informação. Noutros países isto já é uma realidade, esperemos que chegue a Portugal o quanto antes.