Desde os primórdios da Civilização, a Música tem sido sempre uma das formas de expressão mais utilizadas pelo Homem para transmitir o que lhe vai na alma, para se divertir e esquecer as agruras da vida, para promover a sua cultura, para cumprir os seus rituais, alimentar as suas crenças ou, simplesmente, descontrair. Estas e outras justificações igualmente válidas ajudam a compreender a importância que damos às músicas que nos ajudam a viver e a decorar com prazer momentos mais cinzentos das nossas vidas, às vezes assaltados por fases menos coloridas. Nesse sentido, esta linguagem universal pode ser também uma forma de pintarmos a nossa existência, de curarmos os males do espírito, de repintarmos a alma.
A Musicoterapia utiliza a música num contexto clínico para tratamento, reabilitação e/ou prevenção de saúde e promoção do bem-estar, tão importante para garantirmos uma melhor qualidade de vida. Internacionalmente reconhecida como uma actividade clínica, pode ser dirigida a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, sendo que o musicoterapeuta procura responder a necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais ou cognitivas. O processo terapêutico utiliza elementos musicais como o som, o ritmo, a melodia ou a harmonia, com a intenção de facilitar e promover a comunicação, os relacionamentos e a aprendizagem, entre outros aspectos da personalidade humana.
Com o objectivo de conhecermos melhor esta terapia especial que faz uso da Música para ajudar a promover, por exemplo, a comunicação, os relacionamentos e a aprendizagem, o jornal ‘O Correio da Linha’ foi procurar ajuda junto de uma profissional da área, a Doutora Rita Barão da Cunha, que há cerca de dez anos se dedica à área da psicologia clínica em consultório privado e à Musicoterapia com intervenção em contexto clínico na área da multideficiência, com grupos de adultos, adolescentes e crianças, grávidas e mães com os seus bebés. À conversa com a nossa entrevistada, acabámos por abordar também outros temas relacionados com a Música, esse espelho de sons capaz de reequilibrar estados de alma.
Jornal ‘O Correio da Linha’ (CL) – O que é um musicoterapeuta? O que faz?
Rita Barão da Cunha (RBC)– Um musicoterapeuta é um terapeuta qualificado e com formação superior, que utiliza a música num contexto clínico de tratamento com o objectivo de trabalhar questões físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. O processo terapêutico consiste na utilização de elementos musicais como o som, o ritmo, a melodia ou a harmonia, seja individual ou em grupo, com o propósito de facilitar e promover a comunicação, os relacionamentos, a aprendizagem, a mobilização, a expressão e a organização.
CL – Que tipo de formação teve de fazer para desempenhar esta actividade?
RBC– Para poder exercer musicoterapia é necessário fazer o Curso de Musicoterapia e posteriormente obter a certificação profissional junto da Associação Portuguesa de Musicoterapia, a qual é atribuída após um período de Supervisão Clínica e de uma experiência profissional mínima de 200 horas.
CL – Onde exerce?
RBC– Actualmente exerço o meu trabalho no projecto de Musicoterapia da Escola das Artes do Alentejo Litoral, em Sines.
CL – O que a levou a optar por esta especialidade?
RBC– Na altura senti necessidade de complementar e aprofundar a abordagem clínica que tinha como psicóloga, com a utilização de outras ferramentas terapêuticas, como é o caso da música e do som. Penso que a Musicoterapia permite excelentes resultados em determinadas valências clínicas, sobretudo na intervenção com crianças e algumas problemáticas específicas.
“AINDA NÃO É UMA TERAPIA MUITO CONHECIDA EM PORTUGAL”
CL – A Musicoterapia ainda é desvalorizada em Portugal?
RBC– Penso que não. No entanto, apesar de ser reconhecida internacionalmente como uma actividade clínica e regulamentada na área da saúde, acredito que ainda não é uma terapia muito conhecida em Portugal, ao contrário do que acontece em outros países. A Musicoterapia é confundida muitas vezes como o acto de colocar música em locais terapêuticos, o que é muito redutor. A Musicoterapia é muito mais do que isso, é uma terapêutica desenvolvida através da experiência musical criada entre o terapeuta e o paciente.
CL – Na sua opinião, o que deveria ser feito para alteração esta situação?
RBC– Acho que seria importante promover mais a Musicoterapia, bem como os diversos benefícios do seu uso terapêutico comprovados por vários estudos científicos. Seria importante seguir os passos de outros países da Europa e Américas, onde a Musicoterapia já é totalmente implementada em contextos terapêuticos importantes, como hospitais, centros de reabilitação, unidades de multideficiência, centros geriátricos, escolas, etc..
CL – Para poder optar por esta especialidade teve de ter formação musical? Que formação tem nesta área?
RBC– Sim, para se fazer a formação em Musicoterapia é necessário ter conhecimentos musicais sólidos ou ter uma formação prévia. No meu caso, estudei na Escola de Música de Linda-a-Velha dos 7 aos 16 anos, tendo estudado inicialmente piano e posteriormente violoncelo. Mais tarde, fiz um ano de intercâmbio nos Estados Unidos da América, onde terminei o secundário. Durante esse ano, também frequentei uma orquestra, aprendi a tocar saxofone tenor e fiz parte de uma banda de Jazz na escola.
CL – Que tipo de música mais gosta de ouvir?
RBC– Neste momento ouço preferencialmente música acústica e étnica. Também gosto muito de música electrónica calma, como chillout ou downtempo. Quanto à música clássica, continuo a ouvir ocasionalmente, mas vou variando a escolha dos compositores.
CL – Qual a sua música preferida e/ou músicos para relaxar?
RBC– Para relaxar, a minha preferência recai em música electrónica com sons da Natureza ou música acústica com sons de instrumentos vibração ou harmonia, como gongos, taças tibetanas, kalimbas, ou shruti box (instrumento indiano harmónico). Também gosto bastante de ouvir músicas com mantras (do Oriente) ou de Medicina (da América Central e do Sul), em que existe uma repetição das linhas musicais e/ou das letras que ajudam a entrar num estado de relaxamento mais profundo.
“A MÚSICA É UM CATALISADOR DE EMOÇÕES”
CL – A música pode levar-nos à euforia ou à melancolia? É verdade?
RBC– A música é um catalisador de emoções, tem o potencial de abrir as portas do nosso lado emocional e do inconsciente e de revelar os sentimentos que temos dentro de nó s, muitas vezes escondidos.
CL – O que aconselharia ouvir para combater um estado de espírito mais depressivo?
RBC– Respondendo de uma forma um pouco redutora a uma pergunta que daria um capítulo de um livro, tanto podemos ouvir músicas melancólicas para poder sentir essas emoções que levam a esse estado, como forma de as viver e ultrapassar, como também ouvir músicas mais uplifting para nos ajudar a tomar acções, que também nos retiram desse estado.
CL – A música pode influenciar/mudar as nossas vidas?
RBC– Sim, sem dúvida. Como não podia influenciar se antes da primeira respiração já estamos sintonizados com o som e ritmos do corpo da nossa mãe?! A música é também algo de sagrado, uma experiência de conexão com o divino, usada desde os primórdios da civilização humana em rituais, cerimónias e celebrações importantes.
CL – A música é talvez uma das nossas formas de comunicação mais antigas e genuínas? Porque será?
RBC– Talvez porque a música é uma linguagem universal. Cada emoção expressa nas notas musicais de uma música transmite sentimentos, pensamentos, sensações a quem ouve, independentemente da sua origem, idioma ou religião. É uma linguagem onde não existem barreiras. Por outro lado, além de ser uma forma de comunicação entre as pessoas, a música foi desde os primórdios da existência humana uma forma de comunicar com o divino. De ligação espiritual.
CL – Uma música, tal como uma imagem, vale mais do que mil palavras?
RBC– Sim, concordo plenamente.
CL – Louis Armstrong costumava dizer “Só há dois tipos de música: a boa e a má”. Concorda?
RBC– Não concordo muito com essa afirmação. Uma música boa para mim, não será necessariamente uma música boa para outra pessoa. Acho que música boa é toda aquela música que serve o seu propósito de conexão, comunicação e celebração.
CL – Do mesmo modo que um músico nunca toca a mesma melodia da mesma forma, nós também podemos ouvir a mesma música de formas diferentes?
RBC – Sim, é verdade. Embora certas músicas estejam associadas a certos lugares e momentos da nossa vida, a verdade é que a experiência de audição é sempre diferente. Não há dois momentos iguais. A vida é como as ondas do mar, a mesma onda nunca se repete com a mesma água.
CL – Qual o seu instrumento musical preferido? Porquê?
RBC– Pergunta difícil, pois gosto de muitos. Gosto muito do piano e do violoncelo. O piano pela sua suavidade e delicadeza e o violoncelo pela sua emoção e vibração.
CL – Na sua opinião, qual vai ser o futuro da Música? Vai passar a ser criada por computador, de acordo com as preferências de cada um, ou a criatividade humana vai acabar por impor-se às novas tecnologias?
RBC– Penso que poderá passar por esses dois espectros. Com a inovação da tecnologia e dos programas de composição de música, há uma parte da população que poderá preferir esses estilos. Mas por outro lado, a criatividade e a comunicação pela música mais orgânica irá continuar a existir sempre independentemente da tecnologia. Deixar de existir este lado seria um empobrecimento demasiado grave para a Humanidade.
PERFIL
Rita Barão da Cunha tem 43 anos e é natural de Lisboa. Entre os seus hobbies, destacam-se na sua lista de preferências: caminhar na Natureza, ouvir e tocar música, dançar, ler, viajar e estar com animais. O seu percurso profissional começou há 18 anos na Casa Pia de Lisboa. Mais tarde, passou pela área dos Recursos Humanos, em Barcelona (Espanha), e pela área social em projectos dedicados à reinserção social em bairros sociais de Lisboa. Entretanto, há cerca de 10 anos, passou a dedicar-se à área da psicologia clínica em consultório privado e à Musicoterapia. Também promove retiros na área do desenvolvimento pessoal.