Natural de Goa, Jorge Barreto Xavier viveu na cidade da Guarda entre 1970 e 1984, ano em que viajou para Lisboa com o objectivo de frequentar o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Actualmente, está de regresso à Câmara Municipal de Oeiras, depois de, entre 2003 e 2005, ter desempenhado nesta autarquia funções de vereador com a responsabilidade dos pelouros da Cultura, Juventude e Defesa do Consumidor. Presentemente, tem a função de Director Municipal de Educação, Desenvolvimento Social e Cultural.
Com uma vasta experiência profissional, Jorge Barreto Xavier assumiu várias funções públicas, nomeadamente de consultoria, ensino e investigação, tendo sido, por exemplo, Secretário de Estado da Cultura, representante do Governo de Portugal no Conselho Europeu de Ministros da Cultura, na Conferência Ibero-Americana dos Ministros da Cultura e na Conferência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa dos Ministros da Cultura. Foi ainda Director Geral das Artes, do Ministério da Cultura, e Administrador do Fundo de Fomento Cultural.
De destacar igualmente no currículo de Jorge Barreto Xavier o facto de ser Coordenador do Programa Cultura, Desenvolvimento e Sociedade, do Instituto de Políticas Públicas e Sociais, professor auxiliar convidado do ISCTE – IUL e investigador associado do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.
Correio da Linha (CL) – Como é que aconteceu a sua vinda para a cidade da Guarda?
Barreto Xavier (BX)– Nasci em Goa, os meus pais são goeses. Na sequência da tomada de Goa pela União Indiana, em 1961, os meus pais decidiram vir para Portugal, tinha eu cinco anos. A ida para a cidade da Guarda aconteceu porque um tio meu, médico radiologista, estava colocado no Hospital da Guarda e o meu pai, como Delegado do Procurador-Geral da República, pediu colocação na Guarda para ficar perto do irmão. Foi assim que eu saí de um clima quente para um clima frio, um ambiente muito diferente, uma transição violenta, mas a adaptação fez-se e eu hoje posso dizer que tanto gosto de Caril como de Bucho Raiano.
CL – Vem para Lisboa fazer o curso de Direito, mas adquiriu outras competências…
BX – Sim, fiz uma especialização em Estudo das Artes, um programa de doutoramento em Ciência Política, na Universidade Nova, e tenho por concluir uma tese de doutoramento em Políticas Públicas.
CL – Aparentemente a sua formação não está relacionada com a Cultura, todavia a sua vida tem sido muito dedicada a esta área. A que é que isso se deve?
BX – Desde muito cedo estive ligado à criação cultural, porque escrevia e fazia Fotografia. Quando vim para Lisboa notei que havia uma grande dificuldade para quem vinha de fora mostrar o seu trabalho artístico. Havia um circuito limitado de galerias de arte, era preciso estar dentro desse circuito e os “provincianos”, como éramos considerados nós, os vindos de fora de Lisboa, não tinham acesso fácil a esse circuito, portando decidi criar uma associação, em 1986, o Clube Português de Artes e Ideias, para apoiar artistas em todos os domínios, como as Artes Plásticas, a Dança, a Música, o Teatro, o Design, a Literatura, o Audiovisual ou a Arquitectura. Foi uma associação muito abrangente e nos anos 90 foi a maior associação nacional de apoio a artistas em princípio de carreira.
CL – Foi fácil fazer isso naquela altura?
BX – Naquela altura não havia nada deste género em Portugal, a associação realizou a primeira mostra de arte integrada que se fez no País, apresentando ao mesmo tempo várias artes, realizaram-se diversas mostras de arte, designadas ‘Jovens Criadores’, que ainda hoje acontecem. Naquela época tiveram grande importância na promoção de pessoas nas áreas das artes, por exemplo, na Literatura, João Tordo, Luís Peixoto, José Mário Silva, artistas como João Pedro Vale, arquitectos como os irmãos Mateus, mas também na Música, como os Madre de Deus, ou na Moda, como o José António Tenente. No meu caso, o meu trabalho artístico ficou na gaveta, pois não o queria misturar com o trabalho da associação, até porque estávamos a ter apoio do Estado.
CL – Falando em associações, também criou uma associação que funcionou na Fábrica da Pólvora…
BX – Eu queria desenvolver um Centro de Experimentação Artística, contactei diversas entidades e só o presidente Isaltino Morais se interessou pelo projecto e foi possível instalar este centro, a que chamei ‘Lugar Comum’, na Fábrica da Pólvora de Barcarena, onde foi desenvolvido um trabalho importante com projecção a nível europeu. Acabei por deixar de estar à frente deste centro quando assumi as funções de vereador da Câmara Municipal de Oeiras.
CL – Outra iniciativa sua foi a InovArt, lançada em 2009. Ainda funciona?
BX – O programa InovArt surgiu como uma iniciativa governamental, sendo na altura Ministro da Cultura José Pinto Ribeiro, e eu era Director Geral das Artes, desenhei um programa de formação através de bolsas no estrangeiro para artistas profissionais em início de carreira. Decorreu em 2009 e 2010 com a minha coordenação e foi o maior programa desenvolvido em Portugal de formação na área das artes, em termos internacionais, permitindo que 500 jovens por ano pudessem fazer formações de seis meses, com bolsas de estágio, em 90 cidades de 25 países. Pouco tempo depois de eu me demitir de Director Geral das Artes, por considerar que não tinha condições para desempenhar o cargo, este programa terminou.
CL – As queixas sobre a falta de apoio do Estado às Artes, à Cultura em geral, arriscava dizer que têm séculos. Em sua opinião, a que é que se deve esta falta de apoio?
BX – Esse problema tem várias perspectivas. Somos um País com uma história longa, não temos problemas de identidade cultural, pelo contrário somos dos mais estáveis países da Europa, em que existe uma grande instabilidade identitária, veja-se o que se passa em Espanha ou no Reino Unido… Portanto, culturalmente, nós somos um País coeso e estável. Coisa diferente são as políticas culturais do Estado, que não têm sido favoráveis, ao longo dos séculos, para uma difusão das Artes. Por exemplo, ao nível do financiamento do Estado à actividade artística, nos séculos XVI e XVII, não foi feita pela monarquia em Portugal mas em Roma, no Vaticano, porque o Estado Português queria ter uma boa relação com a Igreja e favoreceu vários trabalhos artísticos colocando recursos elevados nessas obras.
CL – Quer dizer que consideravam as artes importantes, mas não no nosso País?
BX – Havia uma ideia diferente do que era a política pública, não se pensava na educação do povo, a actividade artística era muitas vezes mecenática, orientada para palácios, mosteiros ou abadias, mas apesar de não conseguirmos encontrar um florescimento muito forte na Cultura, podemos encontrar na Literatura ou na Pintura grandes nomes, como, por exemplo, Luís Vaz de Camões. O Liberalismo procurou alterar esta forma de estar, favorecendo uma Política Cultural, mas nada se concretizou. A Primeira República queria desenvolver o trabalho artístico, mas nada aconteceu. No Estado Novo o regime fez um controlo cultural, condicionando a liberdade de expressão e o modo de pensar, até ao 25 de Abril. Depois da revolução, Portugal tendo poucos recursos, avançou felizmente com políticas como a criação do Estado Social, mas à custa de um grande endividamento e neste contexto a Política Cultural acabou por ser, mais uma vez, o parente pobre, independentemente de haver a afirmação por parte dos políticos, de todos os quadrantes, de que gostam da Cultura.
CL – Não se melhorava o futuro se fizessem parte dos currículos escolares, por exemplo, a Música a Pintura ou o Teatro?
BX – A Educação Artística em Portugal está a ser pensada há muitos anos, e sucessivamente, não é implementada. No fim dos anos 70, Madalena Perdigão coordenou uma comissão para a reforma do Ensino Artístico e fez uma proposta que não foi implementada. Nos anos 80, Maria Emília dos Santos coordenou outra comissão e a proposta também ficou esquecida. Nos anos 90, Augusto Santos Silva também obteve o mesmo resultado, assim como a comissão que eu coordenei em 2005. E ainda houve outra comissão coordenada por Domingos Fernandes. Actualmente existe um grupo de trabalho que este Governo nomeou, para estudar uma política entre as Artes e a Educação, vamos ver o que vai dar. Este historial é lamentável, o Estado manifesta a abertura para que haja uma maior presença das artes no sistema educativo, mas nunca foram implementadas as recomendações dos grupos de trabalho que ele próprio nomeia.
CL – Isso pode ser justificado pela falta de dinheiro?
BX – Eu creio que não, é um problema de decisão política, tem a ver com o modo como se assimilam certos domínios, o Ministério da Educação é uma máquina muito pesada, com uma imensa dificuldade em se adaptar a coisas novas, mas as escolas acabam por ser cobaias de sucessivos governos, com a implementação de programas curriculares diferentes, isto é um paradoxo, por um lado há um experimentalismo muito grande, mas por outro lado os vetores estratégicos, como a relação entre as Artes e a Educação, têm sucessivamente sido colocados num plano secundário, apesar das afirmações do seu valor e da sua importância.
CL – Ao longo dos anos tem diminuído a oferta cultural. Há algumas décadas havia uma oferta diversificada de espectáculos, nomeadamente de música clássica, dirigidos ao grande público, o que hoje é quase inexistente. Em sua opinião, o que é que nos aconteceu?
BX – Creio que nas últimas décadas, já em democracia, houve uma desvalorização do acesso da população em geral a uma série de actividades culturais, é uma clivagem com a qual não concordo, é necessário encontrar um parâmetro de Política Cultural que seja de ‘Democracia Cultural’, e não de ‘Democratização Cultural’, ou seja, as medidas de Democratização Cultural partem da ideia de que há uma Cultura Erudita que tem que ser ministrada a toda a gente, é um acto de cima para baixo, não é isso que me parece o mais desejável. A ideia de Democracia Cultural é uma ideia de acesso dos cidadãos, no seu todo, à criação e fruição cultural, sem estabelecer barreiras entre o erudito e o popular, mas sim valorizando todas elas, não significando isso que não haja coisas com mais e menos dois campos de qualidade. Há um trabalho a fazer que tem que ter a articulação com a educação, a escola, as famílias, os agentes culturais e os serviços públicos, para melhorar este ‘Ecossistema Cultural’, que precisa de mais equilíbrio.
CL – O concelho de Oeiras tem, ao longo dos anos, dado bastante apoio à Cultura. É uma excepção, ou a generalidade das autarquias do País investe bastante nas actividades culturais?
BX – A soma dos orçamentos da Cultura das autarquias locais é superior ao do Ministério da Cultura para a Política Cultural. Muitas autarquias investem uma percentagem do seu orçamento muito superior ao que o Estado gasta a nível nacional com a Cultura, e Oeiras é um bom exemplo.
CL- Como é que se pode mudar este estado de coisas, no que se refere à Cultura?
BX – Uma das questões fundamentais é a relação entre a Educação e a Cultura, é uma relação que tem que ser melhorada. Se não houver desde a infância educação para a Cultura, nós não vamos ter cidadãos a fruir Cultura, vamos ter de vez em quando consumidores. A Cultura ainda não está inscrita nos nossos genes sociais, temos ainda um grande caminho a fazer e é muito importante para a nossa democracia. A relação entre a Educação e a Cultura é crítica para melhorarmos como sociedade do século XXI. Somos uma sociedade ainda com complexos do Estado Novo, com níveis de literacia muito baixos e muito desigual. Eu sempre trabalhei no sentido de contribuir para uma sociedade melhor através do poder que a Cultura pode dar aos cidadãos, mas é importante a mobilização da sociedade civil, não podemos pensar que o Estado faz tudo.
CL – A que é que se deve o seu regresso a Oeiras?
BX – Deve-se apenas ao convite do presidente Isaltino Morais, que me lançou o desafio de assumir uma Direcção Municipal que estava prevista e que integra a Educação, Desenvolvimento Social e Cultural, para a qual ainda não estava designada a pessoa. Este é um município de que gosto muito e com o qual tenho uma história, por isso decidi aceitar o desafio. Não é reviver o passado em Oeiras, é uma nova etapa do meu trabalho na relação com o município. É preciso saber as prioridades que o Executivo Municipal tem para as áreas nas quais eu assumo a responsabilidade e procurar fazer o melhor que puder ao serviço dos munícipes de Oeiras.
Um forte abraço de parabéns ao Dr. Jorge Barreto Xavier, pelo seu tão valioso e pujante contributo (de invulgar militância no nosso País..) na luta pela Cultura e pela tão saudável influência que ela pode (e deveria ter…) na vida dos Portugueses. Desejo-lhe as maiores felicidades e um excelente ano de 2020. António Cunha.