A Arte de Rua, que tem transformado a paisagem nas grandes cidades, está a conquistar um cada vez maior número de admiradores e a mudar a forma como tem sido vista pela sociedade. Em alguns casos, chegou já às grandes galerias mundiais, conquistou um estatuto por direito próprio, alcançou valor. Longe vão os tempos em que a sociedade via somente nos graffitis um criticável atentado à propriedade. Pelo meio, a revolta social condimentada por ideologias revolucionárias aproveitou também esta forma de expressão para fazer passar as suas mensagens. Os murais gritaram durante décadas palavras de ordem com a política a inspirar muitos graffiters, que alimentaram igualmente sobre si alguns ódios de estimação.
Hoje, as cidades, sobretudo os subúrbios mais industriais, têm vindo a aceitar melhor esta forma de expressão artística. Anteriormente desvalorizados socialmente, os graffiters começam agora a ser convidados para participar na decoração dos edifícios e a intervir também nos espaços públicos. Neste capítulo, a cidade da Amadora tem sido pioneira na valorização do trabalho destes artistas, nomeadamente com a promoção, desde 2015, de um Festival de Arte Urbana que conta com o apoio da autarquia. À frente da coordenação desta iniciativa baptizada com o nome de ‘Conversas na Rua’ está a gestora cultural Catarina Valente, uma jovem de 27 anos apostada em marcar a diferença na promoção do graffiti enquanto forma de expressão artística.
O Correio da Linha (CL) – Como é que surgiu a ideia de lançar o Festival de Arte Urbana da Amadora ‘Conversas na Rua’?
Catarina Valente (CV) – O projecto surgiu na sequência de uma vontade demonstrada pela Câmara Municipal da Amadora em promover a arte urbana na cidade, como uma estratégia de melhoramento da paisagem urbana, de aproximação à comunidade local e de democratização do acesso à prática artística. Este ano, o projecto terá a sua 5.ª edição e, como tal, pretende-se comemorá-la dando continuidade ao modelo de curadoria já implementado. A programação ainda se encontra em fase de preparação.
CL – Têm registado boa receptividade por parte do público e das entidades oficiais?
CV – Sim, o retorno por parte da comunidade local é bastante positivo e encorajador. Temos uma rede de parceiros sólida que nos tem apoiado ao longo das últimas quatro edições e contamos com o apoio da população, nomeadamente, com o seu aval relativamente ao que produzimos e à forma como pensamos a cidade. Acreditamos que definimos um modelo sustentável e adequado ao território da cidade da Amadora, uma vez que cada edição é pensada de acordo com o contexto em que cada intervenção se insere. Contamos com várias solicitações para intervenções por parte de fontes particulares, facto que é revelador do impacto do projecto na comunidade e no território.
MAIS DE 100 REGISTOS MURAIS
CL – No âmbito deste projecto, quantos trabalhos de graffiti foram já realizados na Amadora e de que tipo?
CV – A cidade da Amadora conta com mais de 100 registos murais no seu território, entre intervenções espontâneas e de origem institucional. A Câmara Municipal da Amadora, no âmbito do projecto ‘Conversas na Rua’, impulsionou a realização de 23 intervenções murais, nos últimos quatro anos. O formato mais recorrente é o mural, através das técnicas da pintura, do graffiti ou da ilustração.
CL – Existem muitos artistas à espera de oportunidade para mostrarem o seu talento?
CV – Sim. Todos os meses recebemos pedidos por parte de artistas interessados em participar no projecto ‘Conversas na Rua’. Em todas as edições procura-se apostar tanto em artistas emergentes como conceituados, provenientes de diferentes disciplinas artísticas, no sentido de ampliar e diversificar a oferta artística no espaço público.
CL – Com que apoios têm contado?
CV – Contamos com o apoio de dois parceiros locais, a Ferrassol e a Dedicated Store Lisboa, aos quais recorremos para apoio nos materiais e acessórios de pintura. Ainda neste âmbito e nas últimas três edições, a Dyrup tem prestado assistência também nestas áreas, disponibilizando as tintas de exterior e os acessórios de apoio, garantindo a execução e a durabilidade das intervenções. Para o projecto, é essencial ter uma rede de parcerias sólidas, que apostam na qualidade e numa relação de proximidade. Todas estas empresas asseguram a sustentabilidade do projecto, sendo fundamentais para o sucesso e os resultados que temos obtido ao longo dos anos.
CL – Só têm actuado no concelho da Amadora ou têm desenvolvido projectos em outros locais/regiōes?
CV – O projecto insere-se na Divisão da Cultura da Câmara Municipal da Amadora, pelo que a acção do mesmo diz respeito única e exclusivamente à cidade.
CL – Tem sido fácil divulgar o trabalho desenvolvido por estes artistas? Quais as maiores dificuldades na divulgação do trabalho dos graffiters?
CV – Consideramos que o impacto das intervenções artísticas que impulsionámos foi crescendo gradualmente. Actualmente, contamos com a atenção dos média para promoverem o que de melhor se faz na cidade nesta área artística, sendo que, anualmente, procedemos ao envio de uma nota de imprensa sobre a realização do projecto.
CL – O que falta fazer para dar a conhecer melhor o trabalho destes artistas?
CV – Ao nível da credibilização da arte pública ainda há um longo trabalho pela frente, visto que esta expressão artística ainda não é totalmente valorizada no mundo da arte. Acreditamos que projectos como o ‘Conversas na Rua’ poderão contribuir para a reflexão sobre a importância desta prática no espaço público e para o seu papel no desenvolvimento comunitário.
HOJE HÁ MAIS GRAFFITERS EM PORTUGAL
CL – Já há graffiters a viverem exclusivamente do seu trabalho?
CV – Sim, existem vários artistas urbanos que vivem exclusivamente da sua prática, em articulação com outras atividades artísticas, como a pintura de cavalete ou a instalação.
CL – O Graffiti tem sido visto como um estilo de arte marginal. Essa ideia está a mudar?
CV – Sim. Consideramos que esta premissa tem vindo a mudar, devido à popularidade do género e à adesão por parte dos públicos. Por contaminação de outros contextos, sobretudo, europeus e norte-americanos, o graffiti em Portugal é hoje uma prática que envolve um maior número de artistas. Contrariamente ao seu início, assistimos à legitimação por parte das instituições em relação ao seu contributo para a cidade e o território.
CL – É mais fácil ser graffiter na Amadora do que em outros locais?
CV – Consideramos a questão ambígua. Isto porque, hoje, um pouco por todo o País existem projectos que trabalham o graffiti e a arte pública. No caso da cidade da Amadora, o que se poderá afirmar é que existe um legado desta prática que retoma à década de 1990 e que contribui para a existência de uma cronologia da evolução deste fenómeno, ainda mais, se considerarmos os antecedentes da pintura mural política na cidade, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974.
CL – O projecto ‘Conversas na Rua’ é para manter como está, ou vai evoluir para outro patamar?
CV – A curto prazo tencionamos continuar a criar um modelo sustentável de curadoria de arte pública, que aposte na diversidade de expressões e estilos artísticos, em articulação com a comunidade local. Embora, estejamos abertos a outras possibilidades, para já a nossa acção recai no incentivo à prática artística, na democratização do seu acesso e na melhoria da paisagem urbana da cidade.
MARGINALIZAÇÃO DO GRAFFITI FOI ATENUADA
CL – Existem muitos graffitis em instalações abandonadas, por exemplo, em fábricas encerradas, permanecendo praticamente desconhecidos. Este tipo de arte está condenado a ter de estar escondido, feita às escondidas? Os graffiters são perseguidos?
CV – Projectos como o ‘Conversas na Rua’ demonstram a visibilidade que o graffiti e demais expressões adquiriram no espaço público. Os locais abandonados servirão sempre como espaços de experimentação artística. Actualmente, podemos afirmar que a marginalização do graffiti foi atenuada pelo impacto, pela qualidade e pela popularidade dos artistas. Como tal, consideramos que esta estigmatização, em Portugal, tem vindo a esvanecer-se.
CL – Da quase clandestinidade para o reconhecimento do público. Como se pode fazer essa transição?
CV – Esta transição concretiza-se pela qualidade, pela aptidão e pelo aperfeiçoamento da técnica por parte dos artistas urbanos. Actualmente, é possível encontrarmos nas cidades, obras artísticas com um elevado grau de complexidade e que demonstram o talento destes artistas.
CL – Dos trabalhos já realizados quais obtiveram maior projecção?
CV – Até à data, consideramos que todos os trabalhos contribuíram para a melhoria da paisagem urbana da cidade, a redução do estigma associado ao território, a sensibilização para a prática artística, o envolvimento comunitário e a aproximação do cidadão ao seu contexto. Temos vindo a apostar em artistas emergentes, que nunca tinham experimentado a prática mural, desde a área da ilustração, com as ilustradoras Elsa Poderosa e Ana Dias, à pintura, com a artista plástica Sara Morais, aos mais consagrados, passando pelo graffiti, com o Odeith, representante local, ou a street art com o Gonçalo Mar, o Daniel Eime, a Kruella d’Enfer, o Estúdio Altura, o Frederico Draw & o Contra, o Pantónio, o Regg Salgado, o Hugo Lucas ou o Nuno Alecrim.
CONTROVÉRSIA FAZ PARTE DO MUNDO DA ARTE
CL – Há quem veja os graffitis como um atentado à propriedade, alegando que só sujam paredes. Entre as diferentes formas de graffiti como defender os trabalhos de qualidade, como distinguir o que é arte do que não é?
CV – A distinção entre o que é arte e não arte é muito ambígua, visto que se encontra sujeita a uma posição subjectiva. Qualquer opinião sobre a arte é resultado de uma interpretação individual, que provém do nosso contexto histórico, social, económico e cultural. Em épocas anteriores, houve movimentos artísticos que também foram alvo de estigmatização, nomeadamente o Surrealismo ou o Dadaísmo, e, possivelmente, não se imaginaria que, décadas mais tarde, uma obra de Salvador Dali ou de Marcel Duchamp fosse elevada à condição de Arte. Isto para dizer que a controvérsia sempre fez parte do mundo da arte. A valorização do graffiti como prática artística padece da mesma condição. A sua legitimidade e credibilização é ainda muito discutida, contudo já assistimos à sua introdução no mercado. Vejam-se fenómenos como Banksy ou Vhils.
CL – Em 2013, lançou o “Mapa do Graffiti na Amadora”. Este mapa tem sido actualizado desde então? Com quantos registos de arte urbana conta actualmente?
CV – Sim. Desde 2013, o “Mapa da Arte Urbana na Amadora” tem vindo a ser actualizado com os registos murais que vão ocorrendo na cidade. Neste momento, a plataforma contém um acervo de 115 registos, entre obras sancionadas, ilegais e já extintas.
CL – Como gostaria de ver o futuro do Graffiti?
CV – Gostaríamos que houvesse mais reflexão e discussão sobre a sua importância e o seu papel na dinamização do território urbano. Prevemos que se apostará, cada vez mais, nesta prática e nos artistas, em resposta à nova configuração das cidades e dos seus territórios.
CL – O que gosta mais na Amadora?
CV – A sua diversidade cultural, o seu legado histórico e o seu dinamismo comunitário.
CL – O que gosta menos na Amadora?
CV – Do estigma negativo que lhe foi imposto.
PERFIL
Catarina Valente é a curadora do projecto ‘Conversas na Rua’, um Festival de Arte Urbana que tem vindo a marcar a paisagem da Amadora desde 2015. Natural desta cidade, é licenciada em Ciências da Cultura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com um Mestrado em Cultura e Comunicação pela mesma Universidade e um Doutoramento, em curso, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sobre curadoria de arte pública. O interesse por esta forma de expressão artística surgiu durante a licenciatura, tendo sido mais aprofundado a partir da realização da tese de mestrado sobre ‘O lugar da Mulher na Arte Pública’.